Odyssey | Viagem Em Família
© Simon Trel (frame extraído do aftermovie do evento)
No dia 27 de Maio, a promotora Night Shift principiava a sua jornada pelo panorama dos eventos culturais. "Odyssey" poderá ser encarado como uma primeira viagem pelo leque das artes performativas da cidade do Porto. A proposta era simples, mas o carinho que suscitavam entregar era de curioso realce. Mais de um mês volvido, e ainda com o evento na memória, Alfredo Fernandes narra-nos brevemente a sua experiência numa noite em que a viagem se revelou positivamente inesperada.
Ser estudante e melómano “redator” não são, de todo, ocupações facilmente compatíveis. A vontade de descobrir uma música ou assistir a um concerto sobrepor-se-ão à necessidade de preparação para exames – e, logicamente, vice-versa. Logo, “Odyssey”, da recém-formada promotora Night Shift, terá surgido num difícil momento da vida académica deste estudante universitário, a época de exames. Entre uma certa loucura e uma curiosidade inata, aceitei o repto. A verdade é que, nas últimas semanas, essa noite me surge como uma memória deveras agradável. Uma viagem em família, ou evasão à realidade. Permitam-me a franqueza: quem naquele instante abrisse as portas de entrada do Círculo Cultural dos Operários do Porto (CCOP), que confluem numa escadaria de beleza nostálgica, deparava-se com uma agradável surpresa. Degrau a degrau, vários rostos nos acompanhavam relaxados na subida. Já havia entrado no Auditório antes, num contexto bastante diferente – naquela noite, notava-se uma azáfama particular. Caricato como a aglomeração de três projetos portugueses, e portuenses (Vitória Vermelho, Silentide e Netos da Bruxa), movimentava invulgarmente tanta gente. Um ambiente acolhedor nos abraçava de um jeito terno. Uma antecipada “viagem”, acompanhados por gargalhadas, boa-disposição e rostos que recordamos com afeto muito próprio. Sentia-me entre família. Todavia, antes que a imaginação me conduzisse para outras recordações, uma voz doce me captou a atenção.
Dou por mim a entrar, por fim, na penumbra do Auditório. A anterior voz quente cumprimentava cada novo visitante com um sorriso. Procurei encontrar um local mais adequado para entrever o vulto iluminado de uma rapariga, acompanhada simplesmente pela sua guitarra, num palco amplo. Aparências enganam: uma ternura de relevante dimensão preenchia impecavelmente o espaço. Se por gesto instintivo, se por felicidade reconfortante, dei por mim a adotar um sorriso apaziguador. Sentia-me definitivamente em casa! De vestido vermelho e cabelo ondulado, Francisca Oliveira (de nome artístico Vitória Vermelho) bailava prazerosamente adornada por um foco luminoso cirurgicamente estudado. A sensação de ser involuntariamente transportado para um qualquer bar em pleno deserto americano seria pensamento recorrente. Referências atuais da folk americana (sobretudo a singularidade vocal de Angel Olsen, Adrianne Lenker ou Julia Holter) são subtis aperitivos na construção da persona artística. Entre uma voz que tanto é acolhedora, como também desafiadora, eleva-se pela atmosfera da sala, presenteando-nos com a delicadeza de temas como “O Beijo”, “Always” ou “Não me o dês”. A timidez dedilhada na guitarra recorda-nos, por sua vez, que mesmo sendo jovem, sabe bem o rumo que procura seguir. Múltiplos vultos se foram lentamente sentando no chão. Mais de um mês volvido e com a cabeça mais desanuviada, apercebo-me que não procuravam simplesmente descansar: a formosura das composições convida-nos a uma audição relaxada, atenta e aconchegada. De bares para clareiras no seio de uma floresta, Francisca permite-nos uma viagem momentânea singular pelas memórias de uma jovem artista, e que são, por momentos, também nossas.
Durante aquela noite, a atmosfera confortável (e, diria até, íntima) envolvia-nos de um jeito suave. Um pequeno reencontro de “família alargada” suscitava que grande parte do público se havia deslocado com um intuito muito próprio. Ovação animada se desprendeu dos vultos, à medida que João Freitas (Silentide) subia ao palco acompanhado da banda. “Não vamos falar muito para poder tocar mais coisas para vocês”. Sem apresentações prolongadas, a banda em abraço gracioso nos recolhe no regaço de uma ondulação: “Home” destaca-se como tema cirurgicamente ideal para o início do concerto. Vagaroso na construção instrumental, catapulta-nos de imediato para a realidade post-rock/indie-rock que enreda Silentide. Convido-vos a escutar o álbum de estreia do multi-instrumentista portuense, “Self Note” (lançado este ano). A excelente produção que se atenta no disco é prontamente transposta para contexto de concerto. Das planícies geladas e idílicas imaginadas por Sigur Rós à Tierra del Fuego narrada (instrumentalmente) pelos First Breath After Coma, o frontman conduz-nos para uma nova paisagem adornada por uma voz sublime. Uma bateria excelentemente cronometrada se desprende num ritmo vivaz. As linhas de guitarra, em sinergia com o sintetizador, remetem-nos para essa realidade remota, mas tangível e à distância de um tema. De “Emptiness” a “Self Note”, ou mesmo o sugestivo “Chaos & Order” (que, em disco, me surge como o tema mais divisivo), o grupo oscila naturalmente entre pontuações de despreocupada calmaria e de tormenta sonora. A proposta do portuense não será uma revolução musical em absoluto (como diriam os Silverbacks em “Dunkirk”, “Every punk trick in the book”): as artimanhas sonoras são audíveis, mas primorosamente executadas. E quer João Freitas, quer o seu público o sabiam. Ovações e exultação generalizada se espalhavam pelo espaço. Uma plateia contagiante para um instrumental sublime! Se dúvidas houvesse, o tema de eleição do disco (“Uncertainty”) esclarece-nos prontamente. De novo tomado de surpresa pela candura vocal do músico (acompanhado pela singeleza de Maria Inês Gouveia, em coro), reconheço que, à semelhança de Roberto Caetano (First Breath After Coma), João Freitas poderá facilmente evidenciar-se pela sua singularidade vocal no post-rock em Portugal, na presente década. O preenchido auditório concordava, em uníssono. A determinado momento, Henrique Tomé (baixista) desperta-me dos devaneios, assumindo o controlo de uma tarola, frente a frente a Gabriel Valente (bateria), e recuperando parcialmente a destreza de Richard Parry, dos Arcade Fire, em temas como “Wake Up” ou “Rebellion (Lies)”. O concerto estava prestes a terminar e aquele era, indubitavelmente, um sonho onde gostaria de haver permanecido...
Logo após uma performance de dança contemporânea de Kéren Xavier (posicionando-se como breve interlúdio entre concertos), vários dos músicos que anteriormente havíamos visto em palco retornam às suas posições. É o caso de Maria Inês (voz), de Geraldo Gomes (contrabaixo) ou mesmo de João Freitas (guitarra), assumindo agora uma posição de menor destaque. Para terminar o serão da noite de sábado, os Netos da Bruxa apresentavam-nos o seu primeiro disco, “Animália”. Com uma timidez que parecia ser subtilmente inerente aos três projetos daquele evento, o grupo foi afagando suavemente o público com uma proposta distinta da explosão sonora que Silentide proporcionara. Muito embora, o percurso instrumental em que nos encaminham revela-se, de modo gradual, um encerramento de evento bastante aprazível. O coro de Geraldo e Maria Inês – cuja voz suscita passear jovialmente pelo palco – resultam numa harmoniosa colaboração. Mas será talvez o instrumental o importante fator que, ao quarto tema, me rendeu numa sincera catarse. Entre uma proposta jazz, folk e com uma tendência deveras experimental, esta orquestra de “netos da Bruxa” (sob a orientação do guitarrista, em jeito de maestro) demonstra uma formação musical bastante evidente – algo que, nos dias de hoje, se evidencia como um prazeroso detalhe. Embora algum público do Auditório previamente preenchido tivesse já abandonado o espaço, ainda assim, o ambiente acolhedor permanecera e notava-se que a banda nos mimava com um carinho especial. De modo reconfortante, recuperaram-me a viagem imaginária que principiara durante os concertos anteriores. “Todos podemos ser uma árvore”, afirma Geraldo, apresentando o último tema do projeto. Realmente, nada melhor do que uma evasão mental para nos serenar.
Naquela noite, já à saída do edifício do CCOP, uma sensação jovial e inocente me assaltou os sentidos. Entre a felicidade posterior aos concertos e o cansaço pontual, apercebi-me repentinamente da excelência dos concertos a que havia assistido. Os projetos referidos colaboraram, em algum momento da sua carreira, com o Estúdio Cedofeita (o qual apresenta óbvio elo de ligação com a promotora Night Shift através de Henrique Tomé). Este será um detalhe relevante para se assinalar. E a felicidade anterior manifestou-se mais ainda ao observar a relação tão “familiar” entre todos os elementos que se foram apresentando (e entreajudando) em palco. Se “Odyssey” é o seu cartão de visita, a expectativa relativamente a eventos e projetos futuros é, deveras, bastante promissora.