Encore ‘23

À sua maneira, todos os anos são um concerto - ou um festival, mas isso deixa-se ao critério de cada um. Haverá sempre uma diversidade de memórias que se retém de um evento desta magnitude. Momentos que ficarão gravados na cabeça de todos, expectativas que foram cumpridas, planos que se começaram a delinear e promessas para eventuais regressos. Reconhecendo que nada dura interminavelmente, é necessário cessar com o evento principal. No entanto, e após uma merecida pausa - levando os melómanos mais fervorosos ao reconhecido êxtase de final de concerto -, é imperativo haver um encore.

Como vem sendo habitual - o que, no que se refere a hábito, permite igualmente destacar o ligeiro atraso da presente publicação -, Alfredo Fernandes procura novamente revisitar o ano transato (2023) delineando aquele que poderia ser o seu “encore perfeito”. Vinte fotografias, vinte discos em revista: memórias com um elenco de luxo, marcadas igualmente por veteranos da indústria musical e por bandas-revelação.

 

© Joana Rita

Mediando colossalmente entre a loucura espontânea e uma (falsa) sensação de ingenuidade, os Unsafe Space Garden resgatam uma breve réstia de sinceridade dirigindo-nos a preocupação universal de todas as gerações: “Onde raio está o chão”?! Leia-se “necessidade de crescer” em vez de “chão”, ou mesmo “motivo urgente da responsabilidade adulta”. A banda vimaranense desprendeu- se das amarras da exatidão matemática da Música e entrega-nos uma apoteótica exploração individual/social sob a forma de ‘WHERE’S THE GROUND?’. Nada parece fazer sentido e termina por fazer! Instam-nos constantemente com certa aleatoriedade – e até uma porção de puerilidade –, não cessando de orquestrar instrumentais ávidos e perspicazes. “I don’t want to grow up”, desabafa Alexandra Saldanha em ‘ISN’T THIS IDEAL?’, interpelando-nos pragmática com uma crise de identidade tão reconhecível (“But growing seems to me/That I have to overly identify with my name/And also live as though I were something other/Than the exact same as you are/And that sucks”). O frenesim caótico e a postura talvez infantil de temas como ‘GROWN-UPS!’ ou ‘DONDE ESTÁ EL SUELO?’ tornam-se um adorno de menor relevância à medida que nos identificamos com as consternações reais do grupo. O sexteto transporta-se de realidade em realidade, adotando facetas melódicas distintas de faixa para faixa. No final, a mesma questão é ponderada criteriosamente em todos os momentos, de todos os formatos possíveis. Ser obrigado a crescer e ser adulto numa sociedade que exige flexibilidade sobre-humana e criatividade nula e padronizada é, deveras, digno de surrealismo. Porque haveríamos de reprimir a criança que habita em nós, cedendo espaço ao adulto enfadonho do dia-a-dia? Requer-se a vossa “tremenda compreensão” para esta temática, por favor!

Temas-chave sugeridos: TREMENDOUS COMPREHENSION!, ISN’T THIS IDEAL?, GROWN-UPS!

© Stephen Roe

É realmente impressionante como escutando ‘Heavy Heavy’, uma explosão sonora de sentidos, nos mantém avassalados do início ao fim. Os instrumentos em exposição são residuais – ainda assim, assente numa colossal percussão (ocasionalmente baixo, teclas ou guitarra), as vozes de Young Fathers destacam-se soberanas de um disco de respeito. O decurso do sexto disco do projeto escocês arrebata um ouvinte imediatamente à primeira instância. Impossível será permanecer indiferente! As vozes portentosas de Alloysious Massaquoi, Kayus Bankole e G. Hastings preenchem o espaço, revelando singular poder vocal multiplicado pelo esplêndido coro. Manobram os ouvintes através de uma autêntica cacofonia sonora, relembrando, de tempos a tempos, que a fronteira entre melodia e ruído é deveras ténue. Verifica-se uma delicadeza constante e persistente ao longo do disco. Contrariamente a temas como ‘GET UP’ ou ‘Toy’, onde a excentricidade instrumental é sustentada por uma vertente relativamente mais simplista (embora com bastante eficácia), ‘Heavy Heavy’ demonstra faceta festiva, dotada de inocência contagiante. Envolvem-nos numa dança ininterrupta, carregada de sentimentalidade tribal, sem forçosamente o ser. ‘Rice’ ou ‘Ululation’ transportam facilmente uma realidade festiva, adquirindo um cariz quase disruptivo em ‘I Saw’. Somos impelidos a uma desinibição instantânea. Por ora, e já em discurso mais intimista (‘Geronimo’), urgem-nos em abraçar uma nossa versão que apenas pretende maior liberdade e companhia. Desafiar um confinamento e isolamento do dia-a-dia, arremessando o silêncio a que nos subjugamos continuamente (“You scream/But your soul, your soul ain’t sound”, em ‘Tell Somebody’). Entre uma equilibrada dose saudável de beleza e tumulto sonoros, os Young Fathers procuraram relembrar-nos que “viver” é o mais importante. Como? Não são necessários detalhes.

Temas-chave sugeridos: I Saw, Tell Somebody, Geronimo

© Nikolai Ahn

Em ascensão meteórica em tão curto intervalo, Balming Tiger é um nome que rapidamente se foi dispersando de boca em boca. Embora surjam, em 2018, com o single ‘I’m Sick’, é desde 2022 que vêm sabendo alimentar uma crescente curiosidade do público geral, a par das britânicas The Last Dinner Party. ‘January Never Dies’, o álbum de estreia deste coletivo sul-coreano, alcança-nos de sobressalto desde o instante em que iniciamos respetiva audição. San Yawn, Omega Sapien, Mudd The Student e companhia encarregam-se de nos transportar por um festim de sonoridades, o que revela a verdadeira polivalência do coletivo, formado na totalidade por 12 elementos, desde produtores a letristas, músicos a rappers. Nenhuma faixa segue explicitamente o raciocínio instrumental da anterior. Pelo contrário, alternam de sonoridade de um modo tão simples como se “aperaltassem” para diferentes ocasiões. Esse é, sem dúvida, o elemento surpresa. Através de uma produção passível de inveja por “gigantes” do hip-hop, cada tema surge irreverente e fiel a si mesmo. A estranheza familiar do K-pop apresenta-se de mãos dadas com a assertividade dos costumes urbanos ocidentais. Trata-se de guitarras pesadas, carregadas de suor contundente (‘Sudden Attack’), de um pacifismo calculista prensado a viciantes samples (‘Buriburi’) e de letras pragmáticas expostas em mordacidade convincente (‘Trust Yourself’). Os Balming Tiger exibem-nos de forma bastante competente um reflexo da realidade cosmopolita em que se inserem – uma cidade mundial moldada pela exponente e constante mudança. Na verdade, somos todos habitantes desta mesma metrópole, uma vez que saboreamos requintes de todos os cantos do mundo ao alcance de um clique, adotando-os como elemento integrante da nossa cultura.

Temas-chave sugeridos: Trust Yourself, Bodycoke, Buriburi

© Valéria Martins

A discografia dos portuenses Sunflowers não é de acessível definição. Ideias mirabolantes irrompem de riffs anárquicos e refrões dispostos em formato novelesco/grotesco, aludindo a cenários terroríficos, batalhas intergalácticas e jornadas gloriosas em busca de fast-food. Carlos de Jesus (guitarra) e Carolina Brandão (bateria) nutrem de uma efusividade desinibida que lhes permite múltiplas estratégias instrumentais. A vasta “coleção” musical do (agora) trio reflete uma autêntica desordem, se bem que organizada na aleatoriedade, mas até que ponto aguenta esta bolha criativa sem explodir para a crueldade da vida real? Após subtil hiato (referido pelos próprios como psicologicamente tortuoso), elaboram-nos um dos regressos mais inesperados de 2023. O quarto álbum da banda (‘A Strange Feeling of Existential Angst’) retoma a sua narração em constante mutação. Embora assistamos a um projeto gradualmente autocentrado em plena contenção individual, uma crise de identidade toma de assalto uma discografia impaciente. A afeição de longa data ao desenfreado festim sonoro de temas como ‘Mountain’ ou ‘Castle Spell’, prontamente tropeça na parca polidez de ‘An Ode to the 21st Century Nonchalance’. Ríspidos, merencórios e de irritação crescente, confessa-se que não se reconhecem estes Sunflowers! Encorporando um experimentalismo notório, assumem à dianteira o reflexo de cada um dos corajosos ouvintes (e de muitos portugueses, para ser franco). Raiva pela incerteza do dia seguinte e um pesar pela inércia e desmotivação. Assimilando semelhantes inseguranças, dardejam-nos com um psicadelismo desgovernado e voraz em busca de um fastio viciante. Assim, o que poderia simplesmente ser um disco experimental (seguindo os passos de ‘Endless Voyage’ (2020)) é, na verdade, uma crua e realista perceção do que é “existir” atualmente.

Temas-chave sugeridos: Within A Bubble, A Stange Feeling of Existential Angst, Body Craves Data

© Griffin Lotz

Procurar assimilar instantaneamente a sonoridade dos Model/Actriz poderá ser tão caótico quanto realmente se prevê. O quarteto nova-iorquino apresenta-se, finalmente, com o seu álbum de estreia, em 2023, mas ‘Dogsbody‘ não se cativa com introduções amorosas. Pelo contrário, uma vez imerso no ciclone industrial, toda e qualquer frágil audição ficará à mercê da voz de Cole Haden e da orquestração dilacerante. De matizes cinza, através de um enredo sexualmente explícito e intrincado (sem pretensiosos receios), o grupo agarra-nos bruscamente pelo braço e jamais tenciona largar-nos. É uma atmosfera exasperante! Jack Wetmore (guitarra) e Aaron Shapiro (baixo) proporcionam um power-duo de proporções demoníacas, Wetmore dispara em todas as direções com a sua guitarra-que-faz-lembrar-berbequins, enquanto Shapiro ostenta a proeza de nos cortar a respiração simplesmente com uma linha de baixo (‘Mosquito’). Por seu lado, haverá algo nesta proposta que nos recorda os ambientes underground mais esquiços, embora sejam tentadores. É nesta perspetiva que o disco nos toma de arrasto para uma visão hedonística de uma noite sem igual onde corpos se agitam livremente em prazer coletivo, embalados pelo teor quase fabril do instrumental. Já Haden vai narrando, em jeito sussurrado e instigador, a carnalidade e alucinações das lascivas horas mais negras – e que ocultamos durante o dia, em curioso secretismo. “Há algo distintamente de [David] Cronenberg” em ‘Dogsbody’, afirma J. Edward Keyes, diretor editorial da plataforma Bandcamp. que não estará longe da verdade. Vendo bem, trata-se de uma estranha, deslocada e crua excentricidade que nos provoca, simultaneamente, desconforto e prazer em proporções anómalas e prazerosas.

Temas-chave sugeridos: Crossing Guard, Mosquito, Donkey Show

© Hania Rani

É através de uma sensação de vastidão com suave toque de intangibilidade reflexiva que o imaginário da compositora polaca Hania Rani nos remete para uma realidade isolada e solitária. Como que de olhar perdido no horizonte, no cume de uma montanha, apercebemo-nos do semblante quase fantasmagórico que a artista procura alcançar no seu terceiro registo (‘Ghosts’). Talvez haja mesmo algo de inquietante na panóplia de registos que nos apresenta. Faixa a faixa, somos assoberbados pelos inúmeros elementos sonoros com uma posição milimetricamente estudada. Porém, a sua singular presença permite-nos distanciar, por breves instantes, do quotidiano enfadonho e gradualmente desesperante. Munida simultaneamente de um piano (ou sintetizador) sideral, enreda-nos numa eletrónica abrangente e contemplativa – e a beleza musical de Hania surge deste crescente fascínio dos ouvintes. O álbum suscita uma pequena reflexão sobre a importância de solidões temporárias, de escutar os sussurros que insistentemente ignoramos, de apalpar às cegas as sombras que nos escapam durante o dia e de lidar com a ansiedade da solitude. Em suma, ensina-nos a aceitar a beleza do som do silêncio (“Room full of silence/Darker than night/Somebody is calling/It’s time for goodbye”, em ‘Hello’). Ao longo do álbum, a compositora encaminha-nos por um instrumental que termina a ecoar com uma singeleza única, dançando como um espectro afável, desassossegado, e, por vezes, sedutor. Terminamos por nos render a esta composição de elegância melódica, aceitando o convite para um baile de uma pessoa só: imaginário e solitário, como apenas poderia ser. Tempo de qualidade, diria eu.

Temas-chave sugeridos: Hello, Dancing with Ghosts, Thin Line

© Jordan Hemingway

Esperar o inesperado: um novo álbum de Yves Tumor (alter-ego de Sean Bowie) aborda- nos sempre com uma personalidade complexa e distinta do seu predecessor. O artista norte-americano tem vindo gradualmente a arquitetar uma das carreiras mais intrigantes dos últimos anos. Num registo camaleónico, adquire várias facetas e sonoridades, sem perder a identidade de uma significativa estranheza. ‘Praise A Lord Who Chews But Does Not Consume; (Or Simply, Hot Between Worlds)’ perpetua a discografia com mais um lançamento engenhoso e fascinante. Este soa a rock, mas não o sendo totalmente (albergando até a informalidade da postura punk), e usa ainda uma lascividade eletrónica, recusando, porventura, a excessiva redundância minimalista. Recorre, também, a uma mecânica pop por breves instantes, mas acaba a transcender a própria categoria. Bowie recusa-se a enclausurar, o que dever-se-á a uma criatividade inata e objeto de consequente evolução: tema a tema, insta-nos com uma sensibilidade instrumental e emocional particulares. Para quem procura destacar-se como “estrela pop/rock”, as produções que nos apresenta logo afastam esse detalhe. Ainda que ‘Praises A Lord...’ seja declaradamente um disco de possantes guitarras, são os detalhes mínimos que adquirem maior destaque crítico. O baixo portentoso que nos crava de modo impulsivo ao instrumental soturno (‘God Is A Circle’ ou ‘Echolalia’) e a voz identificável, ocasionalmente em falsetto (‘Lovely Sewer’, ‘Heaven Surrounds Us Like A Hood’), são apenas alguns elementos que conferem uma camada aliciante ao ambiente íntimo que Yves Tumor termina por produzir. Confecionado a partir do génio indomável de um artista digno de estudo, este é sem dúvida um álbum genuinamente rock, mas com a delicadeza humana que muitos outros esquecem pelo caminho.

Temas-chave sugeridos: Meteora Blues, Echolalia, God Is A Circle 

© Sam Joyce

Embora se verifique percetível uma sobressaturação do revivalismo do post-punk britânico (ainda que saudável), persiste porventura uma verdade irrefutável: os ingleses/irlandeses permanecem maestros na produção deste movimento cultural e musical. Que o digam bandas como Dry Cleaning ou Yard Act, mantendo acesa a urgência na narração da realidade, com grau requintado de crueza lírica! Treeboy & Arc são, a título pessoal, um dos projetos recentes que torna a embelezar o status quo. O tradicionalismo avança de mãos dadas com a nostalgia, recuperando suspiros saudosos pelos conterrâneos Gang of Four. A fórmula em ‘Natural Habitat’, como expectável, permanece a mesma: baixo magnético, relato taciturno e uma construção instrumental que procura equilibrar desvaires e introspeções dançáveis. O grupo de Leeds ostenta um orgulho reconfortante em manter-se fiel ao conceito que tornou ilustre o post-punk. A duas vozes, embalam-nos numa homilia pela debilidade da sociedade – desvendando, uma a uma, as condições precárias das sociedades europeias. Os suspeitos narradores admitem uma ausência de brio que se instalou no dia-a-dia, escondida por uma oportuna máscara de beleza adquirida na loja de conveniência do bairro. A acidez do discurso percorre placidamente o disco, ao lado de guitarras impulsivas que instigam com perspicácia sarcástica uma mentalidade crítica por parte dos ouvintes. Não será por acaso: a sonoridade polida pelo baixo reflete o circuito cíclico da indústria, bem como da nossa realidade. O fulgor do projeto reside não na originalidade, mas na afirmação de uma contradição/paradoxo: como poderão padrões históricos tão distintos desencadear um panorama musical tão caraterístico? Sob estas condições, Treeboy & Arc destacam-se com firmeza de excelência.

Temas-chave sugeridos: Retirement, Midnight Mass, Human Catastrophe

© Silentide

Há algo de nostalgicamente inefável na suavidade da ondulação das marés. Uma particular beleza que nos permite revisitar memórias com um certo grau de clareza. É neste cenário costeiro que encontramos Silentide (alter-ego de João Freitas) de olhar absorto no vagar das ondas, como um farol em busca de (in)certezas por entre a bruma matinal. Sensivelmente, pouco mais de um ano após a oficialização do Estúdio Cedofeita, no Porto, o produtor portuense convida-nos a encarar uma faceta mais íntima. ‘Self Note’ revela-se uma carta aberta à reflexão individual do artista, erguendo-se vagarosamente da placidez das ondas (saliente-se a abertura de ‘My Turn’). A estética aveludada que nos afaga docemente exibe cuidado muito próprio. O som é límpido, demonstrando progressão emocional fluída. Todos os elementos musicais são protagonistas por mérito próprio! Porventura, o instrumental que nos sorri inocentemente oculta-nos um artista sorumbático, inundado pelos mais diversos pensamentos. Tema a tema, deparamo-nos com um diário singular, preenchido de anotações e reflexões aos quais o músico pretende regressar. Com delicadeza invulgar e engenhoso artifício musical, abraça-nos numa pacífica jornada pela compreensão das suas múltiplas inquietudes. Ao longo do disco, João Freitas adota uma lírica simples, mas bonita – a fragilidade que carrega em cada tema (tão caracteristicamente humana) transporta-nos de imediato para o nosso próprio reflexo. Confessa-se que o instrumental camaleónico (desde paisagens carateristicamente post-rock à doçura pop/eletrónica) agilizará, sem dúvida, o processo. Porém, em fração de segundos, admitimo-nos reféns das mesmas preocupações, receios e inseguranças do artista. Lado a lado, terminamos o álbum de olhar fixo no mar, aguardando o regresso das certezas que perdemos na maré vaza.

Temas-chave sugeridos: Uncertainty, Emptiness, Home

© MAQUINA.

Dirty Tracks For Clubbing’ é um álbum perspicaz e singular. Aliás, o título arremessa-nos, de imediato, e em tom sarcástico, com uma verdade escancarada – e os próprios MAQUINA. sabem-no. Em quatro temas apenas, manobram uma das produções mais erráticas e sedutoras em solo nacional. Revolvendo insistentemente o método mais eficaz de traduzir a euforia dos concertos para um estúdio, difícil será dissociar esta caótica visão da obra que nos apresentam. Não é uma audição fácil! À semelhança de Model/Actriz, o instrumental ávido e incauto atropela-nos a consciência e catapulta-nos para um cenário onde apenas as sombras se movem. A sonoridade é ríspida e suja, onde a eletricidade estática desprende-se da distorção da guitarra, que se alimenta, vorazmente, das emoções espontâneas dos ouvintes. Dardeja-nos, incessantemente, um caos premeditado. O trio lisboeta dispõe de um calculismo krautrock que se eleva em êxtase instrumental ímpar. Enquanto João (guitarra) se desdobra em frenética coreografia com a guitarra, balançando em decibéis de difícil interpretação, Halison Peres (bateria) e Tomás Brito (baixo) articulam o semblante mais dançável presente no referido disco. Ensurdecedor? Talvez concorde em determinada instância. Todavia, o baixo possante guia-nos pela aleatoriedade esquiça, arremessando-nos alguns riffs bem memoráveis pelo caminho (‘.’). A certa altura, somos empurrados por vultos em constante (e invisível) movimento. Erguendo o rosto, ofegantes pela transpiração que se nos cerca, entrevemo- nos num moshpit virtual. Na penumbra, o trio despeja, vibrante, as cadências ritmadas e portentosas de temas como ‘..’ ou ‘:.’. Em seu redor, uma plateia em estado de alienação total e de sorriso no rosto, anseiam, simplesmente, pelo regresso à pista de dança da vida real.

© Sophie Jouvenaar

Será possível crescer ou amadurecer no espaço de um ano? Sim, mas a tarefa não é fácil ou intuitiva, pois não é passível de controlo. Porém, é certo afirmar que os Pale Blue Eyes cresceram desde 2022. Depois de uma estreia soberba, o trio (ora quarteto, em concerto) surpreendeu ao anunciar uma talvez precipitada continuação a ‘Souvenirs’ (2022). Perante o que nos edificaram em 2023, a dúvida desaparece: ‘This House’ não é a sequência “fofinha” que se aguardava. No cerne dos dois discos, cuidadosamente analisando, deparamo-nos com um vocalista emocionalmente fragilizado e em luto pela morte do seu pai e, recentemente, da sua mãe. A tonalidade instrumental e candura inocente do vocalista entregam-nos uma proposta de enorme ternura, mas sentindo-se, por outro lado, um pesar e uma angústia que indicam uma dimensão artística distinta. O trio, desde logo, debruça-se sobre os ouvintes num abraço solene, embora plangente em que a vertente humana e delicada das suas criações musicais se sobrepõe de um jeito meigo que nos permite esquecer determinados pesadelos. Numa banda-sonora repleta de doçura, desassossego e desalento (à semelhança de Slowdive, no recente ‘everything is alive’ (2023)), partem numa busca incessante por uma sonoridade a que poderão chamar de “casa”. Num emaranhado de diversas artimanhas históricas, a beleza singular de temas como ‘Star Vehicle’ dá origem à destreza sónica de ‘Takes Me Over’ ou à liberdade quase efusiva de ‘Sister’. Toda a produção remete-nos para um verdadeiro escapismo à realidade. Por outras palavras, trata-se de uma independência emotiva de total utopia, uma casa livre das memórias que nos sufocam com a infelicidade dos anteriores pesadelos (“Now it seems like home”, em ‘Heating’s On’). Esperemos que encontrem um lar com a maior brevidade, distante de dissabores delicados, mas sem perder a sua essência.

Temas-chave sugeridos: Spaces, Takes Me Over, Hang Out

© Juliana Ramalho

O álbum de estreia dos bracarenses mutu (‘A morte do artista’) aborda-nos com uma dura e reconhecida realidade. Por um lado, evidencia-nos a banalidade com que relativizamos as interpelações sobre o rumo da sociedade (genérica e automatizada) de forma insistente com firmeza e confiança, Porém, é com uma mágoa dilacerante que assistimos, impotentes, ao ritmo apressado da referida indiferença em nós instituída. Perante temas como ‘Seita’ ou ‘A Ceifa’, apressamo-nos a manusear cuidadosamente esta encomenda de fragilidade notória. O instrumental revela-se delicado e soberbo, acompanhado de versos de agradável delicadeza. A redundância anterior é propositada, em que a simbiose entre ambiente minimalista e atmosférico e os trejeitos instrumentais de cariz tradicional permite ao ouvinte entrever a presença suave de Diogo Martins (voz). Damos por nós seguindo com especial atenção a “homilia” que o vocalista nos vai expondo com uma cumplicidade genuína, se bem que sincera e ríspida. Assim, bem lá do fundo de um hipotético e confortável sofá – uma imagem ironicamente desconstruída em ‘A Corda’ (“Querem que te enterres no sofá/Olha que o conforto é letal”) –, assistimos a um corrupiar de chamadas de atenção urgentes. Porém, a eficácia lírica advém, principalmente, de uma produção discográfica ímpar. O equilíbrio instrumental manobrado por Pedro Fernandes (sintetizadores, guitarra) e Nuno Gonçalves (teclas) – derradeiramente harmonizado por João Costeira (bateria) – reflete uma maturidade invejável. Alternando entre nublados cenários urbanos e retratos a preto e branco de retalhos rurais, apercebemo-nos, talvez, do enorme estado de dormência que nos circunda. Por vezes, estas viagens musicais aconchegantes e singulares são bem necessárias. Isto, como é óbvio, se não nos rendermos ao conforto letal do sofá.

Temas-chave sugeridos: A morte do artista, Ceifa, A Corda

© Olivia Han

Ao segundo disco (Holy Waters), a genialidade sentimental de Jacob Allen (de alter-ego Puma Blue) manifesta-se de um modo totalmente orgânico. A sensibilidade jazz mescla-se com o rigor meticuloso, e imprevisível, da fórmula eletrónica. Porém, é na sua voz que nos espelhamos com carinho, na qual o artista procura retomar a frangibilidade notória do timbre e falsetto. Ora assistimos a uma entrega generosa e charmosa, ora nos atinge uma timidez persuasiva e merencória. Allen sabe trabalhar as emoções e inseguranças que o emaranham, e ao prosseguir a sua discografia evidencia totalmente esse quesito. O artista londrino, incorporando em si próprio as múltiplas vozes de uma geração em sufoco social, destaca-se como nova chamada de atenção. Não se exaspera em prantos, nem exibe reprimendas enfurecidas em tom de desaprovação! Pelo contrário, a serenidade lo-fi com que Puma Blue percorre os temas acautela um certo desgaste individual. Luta pela compreensão e construção de um “eu”, digno de elegância, suspira por visibilidade inócua e respeito pelos que o rodeiam, e aguarda, com uma paciência que gradualmente se esgota, por uma palavra de carinho que releve novamente o sujeito que tanto tardou a desenvolver (“You make me feel so pretty”, em 'Pretty'). Tal ensaio clínico, fruto de importante introspeção, revela-se um singelo mecanismo de autodefesa. Procurando obstinadamente manter-se à superfície, Allen admite necessidade de se recolher à confortável concha que o envolve e perceber, em definitivo, a origem da ânsia que o impede de prosseguir. Em suma, 'Holy Waters' não será mais do que um íntimo e pertinente manual de sobrevivência nos anos 20 do século XXI.

Temas-chave sugeridos: Hounds, Pretty, Dream Of You

© Ashley Bourne

Ao passo que black midi prontamente alcançaram um equilíbrio no puzzle de sonoridades que albergam em cada música, os Squid surgiram como uma fagulha de loucura autocentrada. Adicionalmente, a produção predecessora ao segundo álbum (‘Bright Green Field’, 2021) parecia enredar-se num amontoado absurdo de todo e qualquer detalhe (se bem que temas como ‘Paddling’ ou ‘Pamphlets’ sejam, pessoalmente, deleites auditivos). Embora o single de apresentação (‘Swing (In A Dream)’) não se revele totalmente aliciante, ‘O Monolith’ será dos álbuns rock mais completos de 2023. Descartem o desenfreio sonoro que a palavra nos recorda. Para tal, Yves Tumor ou Model/Actriz servirão bastante bem. O quinteto inglês liderado pelo baterista Ollie Judge reergue-se de uma alucinação crescente e entrega-nos um rock calculista e premeditado, mas demonstrando um subtil carinho por cada passo que dão. Desde ‘Devil’s Den’ vão geralmente reencontrando um caos organizado numa pacificidade verdejante, convidando-nos a conhecer com suspeita tranquilidade a realidade paralela desta sonoridade. A autocontenção excêntrica dos instrumentais cede lugar a uma maior introspeção (‘Siphon Song’), regateando, de tempos em tempos, um certo devaneio (‘The Blades’). Todavia, a extravagância radical permanece. ‘Green Light’, por exemplo, resgata a visceralidade a que nos habituaram e envolve-se em guitarras carateristicamente estroboscópicas, mas suficientemente bem estudadas. O mesmo poderá ser dito de ‘Undergrowth’ que arrebata em definitivo um riff memorável. No fundo, a experimentação é nos apresentada em doses mais comedidas. Não que signifique uma desvirtualização do cerne do projeto! Pelo contrário, os Squid sabem bem aonde desejam chegar.

Temas-chave sugeridos: Undergrowth, Green Light, The Blades

© Shervin Lainez

Numa análise preliminar, poder-se-ia identificar uma breve relação entre o simbolismo da Música enquanto linguagem e a recorrência da temática amorosa, do amor-próprio ao amor pelo próximo. Talvez, os Nation of Language exagerem, subtilmente, com essa relação. De um modo transversal aos seus três álbuns lançados, abraçaram-nos com múltiplas perspetivas desta abordagem. Porém, o trio nova-iorquino não se resume a um “cliché”, entregando-nos letras com um grande coração. Em ‘Strange Disciple’, atingem um patamar mais adulto, comparativamente a ‘A Way Forward’ (2021) e ‘Introduction, Presence’ (2020) – este último provando já ser instrumental e liricamente viciante. No seu terceiro registo, aprimoram tema a tema as suas cadências minimalistas, tornando faixas como ‘Weak In Your Light’ aperitivos com especial requinte. Aidan Noell (teclas/sintetizador) e Alex MacKay (baixo) vão adornando o ambiente circundante, resgatando a beleza essencial dos 80s e dando espaço para a doce e terna voz de Ian Devauney se destacar com plena emoção. Não haverá, atualmente, muitos vocalistas com a presença delicada e timbre do gabarito de Devauney. Dotado de letras emotivas e engenhosas, o artista prova ser um frontman completo. Da insegurança (“The decision/I debate myself, break myself/All for what?, em ‘Too Much, Enough'), ao desespero (“Don’t tell me that I’m/A soft sacrifice“, em ‘A New Goodbye’), ou ainda a superação (“My sole obsession/Finally I feel it fading“, em ‘Sole Obsession’), os Nation of Language são, mais do que tudo, um coração repleto de emoções dóceis e obsessivas. É, portanto, um dicionário por explorar da nossa personalidade fora do horário de expediente.

Temas-chave sugeridos: Stumbling Still, Swimming In The Shallow Sea, A New Goodbye

© Sabrina Parel

A proposta simples de Fin del Mundo suscita uma particularidade singular. Ripostando da lhaneza dos vales às escarpas geladas dos glaciares, o quarteto manobra delicadamente um instrumental imponente, adornado de postura indie e sorriso afável. 'Todo va hacia el mar' exibe o especial carisma dos cenários imaginários, ou melhor dizendo, imaginados! A gravura que Julieta Heredia (guitarra), Julieta Limia (bateria), Lucía Masnatta (guitarra, voz) e Yanina Silva (baixo) esboçam no disco de estreia remete-nos para a terra-natal de um dos elementos da banda, a Patagónia. A Primavera, Inverno e Verão de mãos dadas, ou mesmo o beijo entre “céu” e “inferno”, irónica e subtilmente apelidado de “fin del mundo”.  A calmaria e doçura vocal (ímpar num género musical que geralmente carece de voz) conferem uma sensação de serenidade ao ouvinte – o qual, sem desgrudar do aconchego do sofá, se encanta com a viagem melómana providenciada em meros segundos. Num diálogo constante de guitarras cadenciadas, brindam-nos com uma curiosa antítese. Esta discrepância momentânea colide frequentemente com a perspetiva do ouvinte perante o remoto paraíso. Talvez seja esse o propósito: um aviso para um despertar mais urgente... No fundo, o jovem quarteto é alvo da sua própria magia, relegando sempre certo senso de realidade nesta visão. Incessantemente, manifestam-nos a sua saudade ao longo do seu primeiro disco. Através do vitral por onde assistimos à ilusão coletiva, edificam-nos as memórias que guardam de casa, com carinho infantil. Porém, e jamais apartando o olhar da linha costeira, veem-se forçadas a decidir. De sonho em sonho, encorajam-se timidamente a crescer (“Las flores también crecen em el desierto”, em ‘Las flores’), complementando essa busca pela mudança com a ansiedade e nostalgia familiares. “Até onde poderá alcançar um sonho?”. Até ao fim do mundo, suponho.

Temas-chave sugeridos: La noche, Hacia los bosques, Las flores

© Ingrid Pop

Cerca de trinta e cinco anos depois, os Slowdive permanecem músicos deveras assertivos e de reconhecida maturidade. Ainda que o longo hiato pudesse servir de quebra criativa, ‘Slowdive’ (2017) levou-nos a repensar o estatuto de veterania do quinteto. A resiliência inventiva proliferada, mas um vestígio da passagem do tempo tornou-se gradualmente visível. ‘everything is alive’, segundo disco lançado depois da pausa na carreira, não procura assinalar detalhes do exímio talento dos músicos, até porque já não há margem para essas suspeições adicionais! A segunda “vida” da banda britânica afasta a lamúria pelas dores de crescimento e principia a deambular pelas consequências do respetivo processo. O ambiente é soturno e um ritual de sintetizadores é embalado por um baixo merencório (‘shanty’, ‘prayer remembered’). Quando nos interpelam com a habitual ‘lenga-lenga’, “Estás tão crescido!”, num afável sorriso, escondem-se as inquietações e incertezas do dia seguinte. O presente disco recorda-nos exatamente isto: numa perspetiva melancólica, os Slowdive recordam-nos que a vida é fugaz. As guitarras em distorção permanecem incessantes – esse mesmo elemento tornou ‘Star Roving’ um bastião por direito do shoegaze contemporâneo. Caraterística inevitável do projeto, embeleza a tristeza inerente, envolvendo-nos em terno abraço. No entanto, este é um luto que não pretende dissipar depressa. Trata-se de um intimidante receio de sermos obliterados e engolidos pelo término do trilho (“Time made fools of us all”, em ‘alife’). A travessia pelo deserto abrasador e interminável (‘kisses’) tem de ser percorrida individualmente até sermos capazes de olhar em diante. Nesse instante, talvez nos apercebamos de que caminhamos todos para o mesmo destino em serena companhia.

Temas-chave sugeridos: kisses, alife, chained to a cloud

© Polocho

Dissociar o cenário soturno dos Fontaines D.C. da figura de Grian Chatten não é um percurso óbvio. O frontman assumiu com singeleza um papel imponente na construção lírica e cénica no revivalismo do post-punk – o que terminará por chocar um ouvinte casual de ‘Chaos For The Fly’. Ao estrear-se a solo, o artista irlandês aparta de seu redor as rápidas similitudes e embarca numa caminhada solitária e melancólica pela linha costeira de Dublin. Reencontramo-nos, portanto, com um vocalista assertivo sob o holofote desamparado de um pub, numa sessão de fim de tarde. Passível de se apelidar de fase melodramática (se bem que erroneamente), o álbum reveste-se de uma performance de reconhecida classe da parte de Grian Chatten. Inegavelmente, a voz do artista irlandês é identificável e distinta. Por si só, o convite vocal que nos estende bastaria! Paralelamente à abordagem folk, intimista e adornada ocasionalmente de sublime eletrónica, adiciona a costumeira dramatização das suas letras, aperfeiçoada ao longo de três discos. Titubeando entre teatralidade instrumental e busca incessante pelo âmago do projetor (‘Bob’s Casino’ e ‘All Of The People’, respetivamente), Chatten principia um breve ensaio psicológico acerca da personagem que encarnou ao longo destes anos. As emoções mais recônditas, forçadas a desvanecer na alternância de gravações, concertos e digressões, assumem lentamente o destaque. Num desabafo desalentado, revelam-nos a humanidade que, por vezes, parecemos ignorar nas figuras que vemos subir aos palcos. Em perfeita desordem sentimental, um suspiro inaudível puxa-nos pelo braço e confessa-nos: é normal sentirmo-nos frágeis, desmotivados e em total ansiedade e, mesmo assim, esboçar simultaneamente um sorriso. O próprio artista nos admitiu esse segredo...

Temas-chave sugeridos: Fairlies, Last Time Every Time Forever, East Coast End

© Evita Shrestha

Filiar-se a uma produtora com um legado tão marcante na indústria musical, como será o caso da Matador Records (Yo La Tengo, The Pavement, Sonic Youth, Car Seat Headrest, entre outros), acarreta uma enorme responsabilidade. Tal pressão é verificada no duplo lançamento dos londrinos bar italia, espelhando pressa desmesurada na divulgação de ‘Tracey Denim’ e ‘The Twits’ no mesmo ano. Procurará o projeto britânico deixar uma marca de rápido efeito no panorama musical? Este objetivo é universal, todavia, haverá algo mais ao espreitar cautelosamente esta sonoridade em construção do que uma análise fugaz permite. A inércia dos músicos, a apatia dos detalhes inacabados ou a audição em contínua estase remetem-nos para um estilo musical cuja raridade é, atualmente, alvo de estudo. A par das norte-americanas Horsegirl, Nina Cristante, Sam Fento e Jezmi Fehmi carregam uma displicência caraterística do cenário dos 90s. Aliás, contrariamente à multiplicidade de baixos do revivalismo do post-punk, ‘The Twits’ precipita-nos em riffs de guitarra envoltos num psicadelismo singular e distinto, sobrepostas por um coro de três vozes. Adotam uma abordagem modesta, em moldes DIY, nutrindo de uma estranheza familiar. A pouco e pouco, surpreendem-nos com cadências prolongadas e compassadas, em perfeita dissonância instrumental e com eletricidade suficiente para emular a nostalgia de uns já “velhinhos” Sonic Youth (‘Hi Fiver’, ‘Real house vibes (desperate house vibes)’). No fundo, os bar italia resumem-se um autêntico “peixe fora d’água” (e do tempo), guarnecendo-se com trunfos contagiantes como ‘my little tony’. Porém, espera-lhes um largo passo de distância para a categoria “next big thing“. Para evitar futuras incongruências na discografia, recomenda-se que relaxem e não se precipitem: as ideias certeiras estão lá, mas necessitam de uma sonoridade mais consolidada para as concretizar.

Temas-chave sugeridos: my little tony, world greatest emoter, twist

© James Kelly

Raiva e ânsia constantes, desalento mórbido ou bem-estar temporário, a transição de ‘When I Have Fears’ (2018) para ‘Gigi’s Recovery’ assume-se adulta e pesarosa. Numa demanda pela solitária idealização do “eu”, The Murder Capital entregam-nos uma versão crua e sincera de si mesmos. O post-punk pesado e insaciável de ‘More Is Less’ cede espaço a composições angustiantemente belas. A visceralidade emocional jaz prostrada em pura incerteza existencial. Aqui, não nos falta tempo para introspeção: o sujeito enunciador – uma séria reflexão de James McGovern (voz) – chega mesmo a frear o ritmo que o circunda e interroga-se de forma incessante pela sua própria identidade. O frontman aborda-nos com uma panóplia de emoções indescrítiveis, uma amálgama de sentimentos e pensamentos disposta diante de si, (“Strange feeling I’m dealing with”, em ‘Existence’), revelando-se subitamente uma voz profunda, eloquente e frágil. Neste segundo registo discográfico, o artista irlandês prova-nos assertivamente um portentoso dote vocal, atingindo uma beleza singular em momentos de vagar melódico, como em ‘The Lie Becomes The Self’. Se bem que a desenfreada impaciência de ‘Return My Head’ ou a terna pomposidade de ‘Only Good Things’ nos enterneçam o coração “rockeiro”, gradualmente nos apercebemos que ‘Gigi’s Recovery’ se vai destacando pela minúcia dos detalhes. Desde o gingar pouco óbvio da bateria ao compasso bailado das guitarras, e não esquecendo o corredor de emoções incertas pelo qual o baixo nos guia, o álbum nutre de uma sublime composição melódica, evidenciando a faceta adulta e responsável do quinteto por debaixo da rebeldia e desassossego de antes. De facto, não só revela criatividade, como também caráter musical. Entre lágrimas sentidas, instam-nos com tamanha incerteza, "Is this our end?". Honestamente, penso que não. Talvez seja, sim, apenas o início de algo melhor e mais assertivo...

Temas-chave sugeridos: Ethel, Crying, Only Good Things

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