bdrmm no Outsite M.Ou.Co. | Mais Do Que Um Motivo Para Celebrar
© Discos Perdidos
No dia 6 de Abril, a promotora portuense Suspeitos by Mr. November apresentou a estreia nacional dos britânicos bdrmm. O quarteto shoegaze de Hull lançou o segundo disco (“I Don’t Know”) em 2023, sucedendo a “Bedroom” (2020), primeiro disco do projeto que imediatamente lhes conferiu reconhecimento na indústria musical. Semanas depois do término da sua digressão pelo Reino Unido e Europa, viajaram ao Porto para uma atuação numa sala de concertos com lotação esgotada. Movido pela memória de um excelente concerto, Alfredo Fernandes expõe no presente artigo a sua perspetiva sobre o evento.
Ao entrar no pátio exterior do Outsite M.Ou.Co., no Porto, antes de um concerto, somos recebidos por uma sensação afável, uma atmosfera particular que percorre o espaço por entre pequenos grupos, em círculos íntimos, a alongarem-se em conversas entusiasmadas. É percetível uma certa cumplicidade coletiva num ambiente que vai permitindo diálogos casuais. E os novos visitantes sentem-se subtilmente magnetizados perante a acolhedora receção: a estética simples, embora singular, do edifício, a boa-disposição que nos circunda e a curiosidade melómana induzem-nos numa aliciante espiral pré-concerto. Pelo menos, esta é a minha perspetiva, enquanto visitante recorrente.
Na noite de 6 de Abril, desci novamente a escadaria para o piso subterrâneo e entrei na sala de concertos. Da minha posição, fui assistindo aos movimentos de uma sala que lentamente se ia compondo. As pessoas que observara no pátio exploravam, agora, outros recantos para assistir ao evento, sem cessar os diálogos bem-dispostos e entrecruzados. Se no exterior se sentia algum frio, caraterístico das últimas noites, ali dentro o calor humano tornava-se evidente. Quem entrava no espaço, trazia consigo uma certeza – a lotação do concerto havia esgotado durante a semana, o que não era novidade para a promotora Suspeitos by Mr. November. Neste exato sábado, a promotora portuense estreava em Portugal os bdrmm. A sua viagem, isolada, ao Porto, em início de Abril, compunha uma surpresa e oportunidade excecional para ver o quarteto, atendendo a que havia terminado uma digressão pelo Reino Unido e Europa apenas umas semanas antes. Após o lançamento do aguardado segundo disco (“I Don’t Know”, em 2023), a banda – formada por Ryan e Jordan Smith (guitarra/voz e baixo/sintetizador/voz, respetivamente), Joe Vickers (guitarra) e Conor Murray (bateria) – vem assegurando bastante notoriedade e consistência na indústria musical.
De novo com a atenção no ambiente da sala, sentia-se uma curiosidade que aguardava com a devida paciência... Subitamente, uma cadência grave, profunda, sorve-nos a atenção. As conversas esmorecem, dando espaço a um silêncio momentâneo. Um riff de guitarra soturno acompanha a penumbra. Somos surpreendidos por um portentoso “Angel”, dos Massive Attack, impelindo-nos a assistir com a máxima atenção à entrada dos músicos em palco. Em crescendo, o quarteto principia o que se revelaria mais tarde uma muralha sonora. O shoegaze/post-rock que transpõem é delicadamente arrebatador, e, já no segundo disco, a adição de elementos eletrónicos à equação permite a perceção de múltiplas camadas que previamente desconhecíamos. Em palco, essas camadas expandem-se, enredam-nos e convidam o espectador a deixar a sua postura de ouvinte passivo. O primeiro contacto dos bdrmm com o público portuense passa pelas primeiras três faixas de “I Don’t Know”. Termina a revelar-se uma magistral escolha de abertura de uma banda ainda jovem, mas de atitude madura. Os britânicos apalpam o terreno diante de si, antes de arrancar em sprint por uma (ainda curta) ímpar discografia. “Alps” procura equilibrar, com minucioso rigor, a astúcia eletrónica e portento vertiginoso da dupla de guitarras. “Be Careful” embala-nos numa delicada assertividade (“Be careful of yourself/Prepare for something else”) durante uma linha de baixo facilmente reconhecível. Já “It’s Just A Bit Of Blood” exalta a essência de vários temas de “Bedroom” (2020), instaurando definitivamente a dualidade guitarras/bateria de aliciante audição. Cessada a apresentação, estabelecem finalmente um fugaz contacto ocular com a plateia. Para espanto, sobretudo da banda, deparamo-nos com uma ovação genuinamente sentida. De facto, aquele público devoto ansiava por mais!
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Atuando como banda independente numa indústria musical exigente, os bdrmm têm encarado alguns contratempos com relevante frequência – do qual será exemplo uma campanha de angariação de fundos, organizada pela própria banda, para viabilizar uma digressão no final de 2023. Com dois discos na bagagem, é passível reconhecer-lhes resiliência e coragem. Como tal, é fantástico que uma sala do gabarito do Outsite M.Ou.Co. se tenha esgotado na estreia dos britânicos em solo nacional! O público presente fazia total questão de os ver e ouvir. O nosso entusiasmo alcançava gradualmente o quarteto, com um ambiente dentro do recinto calorosamente acolhedor. Vários foram os instantes em que Ryan Smith se nos dirigia com olhar enternecido. Em troca, os músicos redobravam a intensidade instrumental. “Faltam-nos mais doze músicas!”, dispara Ryan a meio do concerto, com um sarcasmo convincente e reunindo gargalhadas radiantes em seu redor.
Sempre escoltado pelo seu imprescindível boné, Vickers percorria o palco com uma pacificidade singular. O rosto plácido indiciava um à-vontade sublime. Ryan, desfiando uma prestação vocal cristalina, adotava uma coreografia de cabeça ensimesmada, enquanto nos conferia riffs que jamais nos escapariam da memória (“Gush”, a título de exemplo). Por sua vez, Murray agarrava todas as pontas soltas, assumindo o ritmo maduro por detrás dos devaneios das guitarras. No entanto, era Jordan quem lentamente se desdobrava em múltiplas frentes e adquiria merecido destaque. Ao manobrar de forma sagaz o arsenal eletrónico, envolvia o mantra elétrico envergando ainda o baixo com reconhecido profissionalismo. Se a versão de estúdio de temas como “Pulling Stitches”, “If...” ou “Is That What You Wanted To Hear?” é dotada de um diálogo constante entre ruído e beleza, o quarteto termina por potenciar a dissonância e confere uma avalanche melódica. Resgatam o primor dramático de Slowdive e movimentam-se com a displicência desgovernada de DIIV. De quando em quando de costas para o público, arriscam sem embaraço reforçar a barreira sónica. As guitarras agigantam-se, a bateria empossa-se. Entre nova coordenação luminosa de excelência, “Push / Pull” expõe o gabarito do projeto em todos os matizes possíveis. Os espectadores rendem-se por completo ao projeto sonoro, os corpos oscilam pelo recinto e celebram o momento. Tal sinergia poderia ser a definição de um verdadeiro concerto de shoegaze...
Uma hora e meia depois, e ainda que subtis problemas técnicos tenham impedido uma apreciação devida de um tema icónico como “Happy” (o que apenas motivará o desejo de os tornar a ver), o quarteto britânico anuncia o seu último tema. “Toquem ‘A Reason to Celebrate’!”, exclama alguém imediatamente atrás de mim. Contrariando o pedido com uma gargalhada muda, apontam na direção oposta: embalando-se em “Port”, regressam a um perfil introvertido do sintetizador evidenciado no início do concerto. Um loop perfeito fechava-se, afluindo numa longa ovação final. Muitos guardarão na memória este momento especial durante bastante tempo...
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Ainda em transe, ao encaminhar-me para a saída sob a “Orelha do Manel” (objeto que acompanhou Manel Cruz em múltiplos concertos), sou atraído para um conjunto de pinturas de pequena dimensão, mas de temática subliminarmente identificável: várias telas representando álbuns icónicos, elaboradas por Paulo Ponte, recordavam-me parte fundamental da indústria musical: Talking Heads, Nirvana, David Bowie, Pink Floyd, U2, The Sound, entre outros...
A indústria musical não é estática! Álbuns e bandas merecedores de atenção surgem continuamente, e somos nós os juízes do seu potencial e visibilidade. Quem sabe, mais tarde, não encontraremos nesta mesma sala, a pintura de um álbum de bdrmm? Se o início de legados musicais depender de públicos como o desta noite, confesso termos mais do que um motivo para celebrar... Mesmo quando não tocam ‘A Reason to Celebrate’!