Sunflowers e MДQUIИД. no Lustre | Tempestades Que Não Ficam À Porta
© Matilde Brito
A 8 de Março, a promotora bracarense Bazuuca dava continuidade ao seu calendário de concertos com uma proposta aliciante: Sunflowers e MДQUIИД. haviam sido convocados simultaneamente ao Lustre, em Braga. Os primeiros, o trio portuense composto por Carlos de Jesus, Carolina Brandão e Frederico Ferreira, traziam consigo o seu mais recente álbum (“A Strange Feeling Of Existential Angst”, de 2023), ao passo que o trio lisboeta composto por Halison Peres, João e Tomás Brito nos preparavam terreno para a transição entre “Dirty Tracks For Clubbing” (2023) e “Prata”, segundo álbum a ser lançado em Abril. Alfredo Fernandes narra, neste artigo, a perspetiva de uma noite assolada pelo prenúncio constante de chuva torrencial no exterior e ventos ciclónicos pouco anómalos no interior da sala de espetáculos bracarense.
A simples ideia de sair de casa perante temporal pouco convidativo era um autêntico absurdo. Passar do pensamento para a ação revelava-se uma atitude deveras irrefletida, diria até irracional. Como tal, é passível de se afirmar que ao decidir seguir viagem para Braga, sob máxima tensão climatérica, acompanhava-nos uma sensação inconsciente de adrenalina e uma circunstância de risco, jocosamente sentada e camuflada nos bancos do carro. Pensando bem, uma parte da essência genuína de melómano assenta, fundamentalmente, na sua capacidade de suportar estes instantes extremos, tendo em vista o objetivo revitalizante em mãos. Nenhum rosto dos que se refugiavam à entrada do Lustre evidenciava o mínimo resquício de vontade de regressar ao conforto caseiro. Resistindo ao frio, vento e à iminência mais do que anunciada de nova vaga de chuva torrencial, o número de impacientes para entrar no espaço era gradualmente considerável, e o relativo atraso na abertura de portas apenas fazia crescer a agitação individual. Todos os presentes o sabiam: se haveria momento para suportar qualquer risco, aquela era uma ocasião ideal!
Como ponto de partida para um calendário preenchidíssimo, a promotora bracarense Bazuuca apresentava-nos o que se prenunciava como uma apoteótica dose dupla de “caos premeditado”. Reunir na mesma noite bandas do gabarito de Sunflowers e MДQUIИД. é de uma impensável coragem – porém, acredito que os que se haviam deslocado ao Lustre nutriam também de relativa insânia melómana. De cada vez que visito este espaço, apercebo-me de um ambiente familiar de particular relevância. Os múltiplos grupos que se vão reunindo mesclam-se continuamente, conferindo uma fluidez e boa-disposição. O interlúdio entre intempéries (uma intermitente no exterior, outra que se avizinhava ininterrupta pelo interior) permitia igualmente apalpar o terreno – os músicos procuravam adaptar-se ao público, conhecendo-o, e este último procurava imaginar o que o esperava nas horas seguintes. Os nossos olhos narravam uma gama de emoções. Assim se descreveria a premonição de uma fagulha que despertaria permanente bulício sob a famosa bola de espelhos da sala de espetáculos. Os dois projetos em questão firmaram o seu estatuto em palco, com prestações transmitidas de boca em boca. Ao revolver frequentemente estes ambientes de cariz underground, aprenderam bem a lição sobre como executar um concerto memorável. A questão residia, pois, noutro quesito: o momento exato em que o status quo do espaço se alteraria, e seus respetivos moldes. Conseguem imaginar a tensão ardente que ocorria nos sorrisos mudos de cada um?
Subindo pacificamente ao palco e dispondo-se com a naturalidade caraterística de quem já se afeiçoou a regimes intensivos de concertos, os Sunflowers esboçam um semblante sereno e invulgar. A ténue distorção que se principia a escutar alerta os mais desatentos, e, lentamente, a plateia que se vai compondo dardeja os músicos com a inquietação genuína de ouvintes. Apressar-se-iam numa alucinante jornada pelo repertório? Planeavam grudar-nos a atenção numa espiral de rock psicadélico dominado por um frenético compasso de bateria e guitarra desvairada? A resposta mais direta perante o sucedido seria um categórico, “É difícil de explicar...”! Carlos de Jesus (guitarra), Carolina Brandão (bateria) e Frederico Ferreira (baixo) invertem o rumo dos devaneios gerais da sala e encaminham-nos para o reflexo de uma maturidade musical gradativamente complexa. Já a nossa cautela é notória e revela-se na habitual distância de segurança aos músicos. Não cesso de encarar este detalhe com um sarcasmo sorridente. No fundo, revela-se um absoluto e hilariante cliché do qual terminamos por não escapar, avidamente interpelado pelos elementos em palco. “Nós gostamos de calor humano!”, desabafam, ao envergar as mágicas palavras que nos levam a aproximar do epicentro da tormenta.
Posicionando-se temporalmente distantes do lançamento de “A Strange Feeling Of Existential Angst” (2023), os Sunflowers suscitam começar a desprender-se da transposição fiel do último registo e dão por si a aventurar-se em peculiar nostalgia. “Sleepy Sun” ou “Castle Spell”, do seu segundo disco (“Castle Spell”, de 2018), emergem da cacofonia promovida gratuitamente pela distorção da guitarra de Carlos. A receção, ainda que envergonhada, induz uma coreografia inata na cabeça dos espectadores, simultaneamente intrigados. Porém, será de esquecer de imediato uma total rendição em mosh pit. A vertente esquiça do instrumental (transposta nas múltiplas e diversas expressões faciais do guitarrista) enleva, por sua vez, uma atenção peculiar nos mínimos detalhes. O baixo perentório, a excecional aptidão física de Carolina Brandão ou o “exótico” sintetizador rodeado pela realidade circundante incutem-nos um pensamento singular: o trio adquiriu uma maturidade invejável ao longo dos últimos anos, desinibida de potenciais receios estereotipados e que possibilitou ao alinhamento evoluir de modo fluído. A eletricidade do universo de bolso é conduzida de modo crescente e enreda-nos numa estranha sensação de “lar”. Todavia, será uma intuição errada. De “Zombie” a “Hasta La Pizza (Rest In Pepperoni)”, os temas de “The Intergalactic Guide To Find The Red Cowboy” (2016) regressam com carinho redobrado e são incendiários por natureza. Sem freios, terminam por entregar a tempestade já de si anunciada e arremessam-nos na mesma. Em autêntica comunhão final com o público, o vocalista empunha o microfone como munição sonora e atira-se desenfreadamente para o meio da agitação dos espectadores, enquanto que, em palco, o frenesim se avulta e se exibe ao mais alto nível. Uma vez cessado o crescendo vertiginoso do concerto, uma certeza indubitável me ocorre no imediato instante: os Sunflowers são, ainda, uma “máquina” de infernizar concertos! Contudo, na mesma noite, tal rótulo não seria exclusivo dos portuenses...
Afirmar que a ansiedade se dissipara após a primeira ronda de tareia sónica seria um perfeito engodo. A atmosfera do Lustre vibrava com o subtil entusiasmo dos seus visitantes, e embora a agitação fosse definitivamente percetível, existia uma noção não verbalizada de urgência em reservar a euforia para o momento preciso. Assim que as badaladas em reverberação anunciaram a chegada do trio ao palco, um cronómetro invisível principiara a contagem decrescente para o despertar de um tufão humano. Permitam-me assinalar o seguinte reparo: em nota pessoal, para quem assistira ao calor infernal vivido no Maus Hábitos (na passagem do circuito Super Bock Super Nova) e à derradeira – e imprevista – consagração em pleno dilúvio, no festival Vodafone Paredes de Coura, conservará os ditos momentos como memoráveis no curioso percurso dos MДQUIИД.. Porém, uma verdade premente permite-nos olvidar tais memórias, residindo, pois, na eficácia do instrumental em arrancar-nos do solo em meros segundos. Ninguém permanece indiferente e, quando nos apercebemos, deparamo-nos rodeados por um espírito festivo contagiante, alimentado pelos movimentos crus dos vultos de Tomás Brito (baixo) e João (guitarra).
A propósito da sua visita a Braga, o trio lisboeta encaixa no cardápio, com suficiente mestria, as primeiras evidências do álbum que nos aguarda em Abril. “Prata”, segundo registo do projeto, suscita adquirir uma postura mais madura e, por estranho que pareça, desvenda até uma sonoridade organizada. “body control” ou “denial” surgem no concerto lado a lado com uma polidez musical impressionante, destacando um baixo de facto vincado e portentoso. Terminam a demonstrar, assim, o modo como um “mecanismo” de pista de dança pode crescer em tão curto espaço de tempo, servindo-se para tal da prática de campo para reestruturar as engrenagens. Deixaram de se preocupar com a perpetuação do ambiente caótico de “Dirty Tracks For Clubbing” (2023) e alcançaram, com o merecido respeito, a glorificação há muito prevista. Porventura, o público não se importa com semelhantes análises racionais em pleno concerto: disparam total confiança na proposta, já de si rendidos às ordens de comando de Halison Peres. Por detrás da bateria, a qual manobra com invejável destreza, e por entre fios de cabelos enchumbados em suor, o mesmo contempla, sob a bola de espelhos, uma mancha de vultos em absoluto gáudio. Para os residentes temporários da área central da plateia, sempre em incansável movimento, o tempo tende a passar a meia velocidade. Os flashs hipnóticos entorpecem a consciência e remetem-nos para uma alienação indescritível. Observando de perto o referido fenómeno, reconhecemos padrões habituais nestas andanças, desde abraços imprevisíveis, brados provenientes de espetadores anónimos e embates corporais imbuídos pelo natural código de honra do mosh pit. Ali, naquele espaço tão especial, permitiram-se desligar da realidade exterior, esquecer provisoriamente a certeza do fim do concerto, o regresso à realidade. Procurando uma resposta na felicidade momentânea, entregam-se ao vendaval corpóreo de vultos dançantes. Os músicos, por sua vez, cingem-se a drenar-nos as inibições, auscultando o público com um sorriso, diria, pouco inocente – o motivo pelo qual desafiáramos o cansaço de final de semana desdobrava-se em palco em múltiplas coreografias, estimulando-nos (assim como a si próprios) ao limite de uma convulsão emocional até que, subitamente, finda o turbilhão. As expressões faciais inebriadas pelo caos multiplicam-se, revertendo-se numa despedida sentida da sala de espetáculos.
Dirigindo-nos para a saída do Lustre, um ar seco recebe-nos com uma frieza anunciada. Despertos pelo choque térmico do suor, era imensa a vontade de regressarmos ao interior do espaço! Em silêncio, pela noite gélida de inverno, regressei ao carro. Na verdade, confesso que já não me recordava da ameaça de chuva que me apressara para o concerto, pois outros pensamentos me mantinham momentaneamente mudo, num sorriso inaudível. As memórias da noite falavam entre si num silêncio que, diria, feliz! Um excelente concerto (ou dois, para ser preciso) consegue ter esse efeito. Entre cansaço e saudade, regressávamos a casa. De facto, é de temporais de semelhante calibre que a indústria musical, naturalmente, precisa. Enquanto ouvintes e espectadores, temos o privilégio de alimentar a tormenta com as emoções devidas pois, em palco, a mesma acabará por retribuir-nos na dose certa.