Ishmael Ensemble no Hard Club | Para Catarse, Prima Quatro
© Jorge Santos
No dia 13 de Dezembro, a promotora Night Shift trouxe a Portugal o quinteto britânico Ishmael Ensemble. Em estreia absoluta no país – e com segunda data no LAV (Lisboa Ao Vivo), no dia seguinte –, era notória uma certa ansiedade pelos elementos da promotora portuense. Trazendo consigo temas de dois álbuns bastante singulares (‘A State of Flow’, de 2019, e ‘Visions of Light’, de 2021), o concerto do grupo de Bristol na famosa sala de espetáculos Hard Club prometia uma memória para mais tarde recordar. Alfredo Fernandes, que desde Maio de 2023 não se reencontrava com um evento da Night Shift, transpõe neste artigo a sua perspetiva do concerto.
Chegamos com relativo atraso ao local do serão daquela noite. Em parte, devido a algum trânsito; se bem que uma ligeira demora na bilheteira também nos reteve à porta. Do interior da Sala 2 do Hard Club, alcançavam-nos suaves beats e vislumbres de feixes vermelhos. Assim como o nosso grupo de três pessoas, outros se foram reunindo à entrada. Trocas de olhares denunciavam a expetativa habitual. Preparávamo-nos placidamente para adentrar na jornada que a Night Shift planeara. Em dose dupla, no Porto e em Lisboa, Juanes e Henrique Tomé haviam organizado a estreia absoluta em Portugal de um dos seus prediletos guilty pleasures: Ishmael Ensemble prometiam uma viagem sensorial ímpar. Movido pela curiosidade e pela particular excelência do segundo álbum do grupo de Bristol (‘Visions of Light’, lançado em 2021), confesso ter-me rendido ao repto.
Após transpor a porta, fomos acariciados por um anfitrião de notória boa-disposição. Por detrás da mesa de mistura, E.A.R.L. – membro do coletivo Monster Jinx – parecia fazer questão de tornar aquela sala de espetáculos numa acolhedora sala de estar, compondo o espaço para os concertos que se seguiam, com uma breve e estimulante comitiva de boas-vindas. Entrando de forma gradual e relaxada, o público dispunha-se de um jeito íntimo e familiar. A pouco e pouco, múltiplas conversas paralelas às cadências house/lounge do DJ portuense foram naturalmente florescendo. Expectativas para concertos vindouros, troca de ideias para a prenda que faltava comprar para o Natal, ou mesmo a clássica questão “Viste o tempo, ontem?!”. Embora o fio condutor se revelasse uma autêntica aleatoriedade, sentíamos que qualquer tópico de conversa suscitava pertencer àquele momento. A sinergia entre DJ e espectadores revelava-se deveras prazerosa. E demonstrávamo-lo de afável sorriso no rosto. Era uma noite de quarta-feira, em pleno Dezembro e, porventura, o calor humano da sonoridade urbana de E.A.R.L. permitiu desprender-nos numa coreografia instintiva, inata. Pessoalmente, senti-me em casa.
Entre concertos, precipitam-se-me múltiplas memórias a ocorrer em simultâneo. Regressando à sala de espetáculos, sinto-me de novo atraído por um impulso de semblante humano. Cadências graves irrompem do interior, sorvendo-me a atenção. Uma voz pesada surge em paralelo. Durante a minha breve ausência, duas raparigas se dispuseram em palco. Joana Rodrigues (produtora) alinha-se com um computador portátil, desencadeando uma série de samples pré-gravados – mas docemente estudados e trabalhados. Carolina Viana (cantora, rapper) coloca-se frente a frente ao microfone, de rosto simpático. Segurando um pequeno caderno na mão direita, precipita-se nos seus versos e insta-nos num momento de spoken-word, familiar embora enigmático. Afirmar que redoma é uma dupla relativamente recente será, talvez, redundante na minha análise. Muito embora, esse elemento não é, de todo, facultativo: suscita-me que o fator “novidade” resulta em sua auspiciosa vantagem. Alicerçando-se no panorama underground do Porto que as envolve, Carolina e Joana recuperam alguma pureza e subtileza da essência do hip hop. A voz serena (e raramente trabalhada) assenta num instrumental que nos transporta para uma sensação citadina muito caraterística. E, em contexto de concerto, entrevemos esses detalhes com alguma facilidade. Numa postura introvertida, a vocalista vai perfilando carinhosamente os temas que compõem o EP da dupla (‘parte’, de 2022). Entre os holofotes vermelhos que sobre si incidiam, expõe-nos múltiplas perspetivas sobre a realidade urbana/metropolitana, como se nos revelasse fotografias numa sala escura. O instrumental é sombriamente delicado, preenchido de samples e beats cálidos e aliciantes. A lírica é realista e com uma ácida crueza, amiúde esquecida por grandes figuras do meio. A cumplicidade da dupla (parcamente trocam olhares entre si) remete-nos para um potencial bastante promissor, em futuro próximo. Apenas lamento pelos problemas técnicos manifestados com alguma mágoa pela produtora – ainda que Carolina procurasse incessantemente acautelar-nos para as dificuldades da colega. “Não sabemos o que se está a passar. Isto normalmente não acontece!”. Porém, o público não esmorece a moral da dupla portuense: entregam-lhes confiança total. Por si só, um detalhe bastante reconfortante. Não será por acaso que havia já considerado o projeto da Night Shift uma verdadeira “família” ...
O ambiente da sala muda, entretanto. Uma ansiedade saudável. Movimentações constantes em palco e na plateia. Embora o espaço nunca tenha sido preenchido na totalidade, era percetível pelo olhar o motivo pelo qual os espectadores se deslocaram. Da parte da banda inglesa, as expressões faciais e algum nervosismo (bem disfarçado) anteviam também uma certa satisfação. Haverá sempre uma magia inerente ao primeiro concerto num novo país... Entrando calmamente, perpetuam a prévia inquietação da plateia; uma aura onírica envolve o quinteto à medida que asseguram o seu espaço. Rory O’Gorman (bateria) e Harry Stoneham (baixo) marcam vincadamente o ritmo do concerto, ao qual o saxofone de Pete Cunningham (frontman) se aproxima, com a leviandade que se reconhece ao instrumento. Muito embora, após uma aconchegante abertura, surpreende-nos uma voz quente, por instantes nasalada, que toma a sala de assalto. Na dianteira do palco, Holysseus Fly (nome artístico de Holly Wellington) afaga docemente a audição do público que em si fixa o olhar, perplexo. Escutando no conforto doméstico os dois discos de Ishmael Ensemble, somos convidados a assimilar um jazz em permanente diálogo com a eletrónica. É simultaneamente bonito, arrebatador e libertador – tal como um bom projeto de jazz poderá ser. Jazz é sentido de múltiplas e distintas formas, variando de pessoa para pessoa, de momento para momento. Naquela noite, testemunhei essa perspetiva. Ora entrevia indivíduos estáticos, de olhos sorridentes e de cabeça balançante, ora soltava uma simpática gargalhada ao ver um grupo de jovens raparigas, diante do palco, numa frenética e desinibida dança. ‘Full Circle’ e ‘Wax Work’ eram reflexo desta alternância de humores, flutuando da intimidade para a descontrução instrumental do embaraço inicial da plateia. Os momentos de jazz são portentosos, sublimes numa singeleza que é somente sua por direito; porventura, a envolvência eletrónica não ficará atrás na formosura sonora. Já a doçura vocal de Holysseus continuava a conquistar os corações frágeis da sala. Numa ausência temporária do palco, a vocalista deixa-nos a sós com os restantes companheiros. Stephen Mullins (guitarra) precipita-se a desdobrar numa ágil sincronia com o instrumento em seus braços, conferindo uma leve tonalidade post-rock ao cenário. Por sua vez, Cunningham alterna habilmente entre o saxofone e a artilharia eletrónica, enquanto O’Gorman exibe, confiante, uma particular criatividade rítmica. Jazz, eletrónica (com subtis traços de trip hop) e post-rock: ‘Lapwing’ poderia ser a representação ideal da beleza musical com que presentearam o público. O mesmo sucedeu em ‘Feather’, prontamente anunciado por uma linha de baixo densa e pela voz meiga de Hollyseus. Senti-me leve, pairando suspenso nos meus próprios pensamentos. Um refúgio melómano; ou, por outras palavras, uma autêntica catarse. O jazz tem esse efeito em mim; e Ishmael Ensemble alcançaram-no com uma destreza ímpar que, dias mais tarde, confesso reconhecer-lhes. Recusando a comum saída para o encore (os próprios reiteram um caráter “constrangedor” desse hábito), procuram fechar o concerto com uma chave-de-ouro instrumental, adornada pela presença de “femme fatale” da vocalista. O já anunciado término do concerto apanhou-nos em sobressalto: acredito que permaneceríamos no local durante um intervalo infinito, rendidos ao excelente desempenho do quinteto britânico. Resta-nos aguardar pelo seu merecidíssimo regresso.
Um a um, fomos saindo do edifício envidraçado com sorriso de ponta a ponta. Sem muitos comentários, apenas com uma evidente certeza. Uns minutos volvidos e demos por nós a entrar no elevador do parque de estacionamento, no Parque do Infante D. Henrique. Rapidamente, a levitação emocional de cada um foi cessada de rompante por um elemento alheio. Os olhares cruzaram-se num botão. Um simples botão de elevador. Com certa comicidade, desabamos numa gargalhada mútua. Um botão para o quarto piso. Escolha mais rocambolesca para um piso que, de facto, era inexistente! Este elevador não iria além de uma praça (isto é, piso térreo). Porém, ali estava: um botão para o quarto piso. Porquê explicitamente um quarto andar? O que motivou a ausência dos botões para o primeiro, segundo e terceiro pisos? E porque haveria alguém de grafitar a palavra “God”, acima dos botões, com um requintado sarcasmo? Enquanto nos debatíamos em piadas instantâneas acerca do episódio, uma possível verdade estirava-se escondida. Dentro daquela sala de espetáculos, vários foram aqueles que ascenderam ao seu “quarto piso”...