Liana Flores no Teatro Jordão (Guimarães) | Do Calor Da Voz Brasileira Ao Cinzento Frio Britânico
© Diogo Carvalho
Durante o mês de fevereiro, Liana Flores preparou uma digressão com passagem por várias salas de espetáculos em Espanha e Portugal, com o intuito de apresentar, ao vivo, o seu álbum de estreia, ‘Flower of the soul’ (2024). A 26 de fevereiro, penúltima data da digressão, a cantora e compositora anglo-brasileira subiu ao palco do Teatro Jordão, em Guimarães. Alfredo Fernandes narra-nos, neste artigo, a sua perspetiva do concerto da artista, acompanhado pelas fotografias de Diogo Carvalho. (Todos os direitos reservados)
As memórias que retenho do Teatro Jordão (Guimarães) não são, a título de curiosidade, da sua sala principal. Conheço com maior pormenor a Sala de Ensaios das Bandas, devido às últimas edições do festival vimaranense Sonus Art Fest. A breve passagem por Portugal da artista anglo-brasileira Liana Flores, no contexto da digressão ibérica de divulgação do seu primeiro LP, revelou- se um excelente pretexto para retificar o referido detalhe e entrar, pela primeira vez, num dos ex-libris culturais da cidade “berço”.
Com um repertório ainda curto e recente, a cantora e compositora residente em Londres há́ pouco mais de dois anos, editou em 2024 o álbum de estreia, ‘Flower of the soul’. Acompanhada de uma boa receção por parte da crítica, a primeira abordagem discográfica de Liana Flores exibe uma sensibilidade particular e invulgar para uma artista tão jovem. As múltiplas influências das duas margens do Atlântico culminaram numa proposta delicada e despretensiosa, preocupando-se notoriamente na preparação do ouvinte para uma catarse silenciosa. Instrumental e vocalmente, este projeto promissor suscitava-me enorme curiosidade relativamente à transposição do delicado material de estúdio para um palco de considerável proporção. Um auditório suficientemente composto, imbuído pela caraterística formalidade deste ambiente, parecia partilhar da mesma ansiedade.
Para surpresa dos espectadores, a primeira entrada em cena não seria certamente a que se esperava. Emergindo pelo fumo que se expandia, Raquel Martins, artista portuense a residir em Londres, dirigiu-se até um sampler estrategicamente posicionado. A cantora e compositora, que conta com uma passagem recente pelo festival de referência europeia Eurosonic, fora convidada por Liana para integrar a digressão por Espanha e Portugal. Confesso que tinha as minhas reservas face à compatibilidade da sonoridade de moldes DIY de Raquel com a realidade do concerto seguinte. Provei-me enganado!
O contraste resultante entre o negrume do cenário e as luzes insinuantes que se abatiam sobre a artista favoreciam o crescimento gradual de um minimalismo rítmico, repartindo a atenção com uma guitarra. Os acordes dissonantes dedilhados por Raquel permeavam pela atmosfera que se adensava e abriam, seguramente, o espaço necessário para a sua voz frágil se destacar. A imensidão do palco, em proporção com a ocupação momentânea, conduzia os olhares do público a concentrarem-se unicamente na figura central da performance. Em contrapartida, a postura comunicativa de Raquel Martins facilitava a interação com os rostos que a própria ia encarando. “Nos últimos dias, tenho tocado para plateias em pé, com as pessoas mais perto dos músicos”, desabafou a artista. Porém, coincidindo o seu pensamento com o meu, não se demonstrou indiferente perante a beleza do auditório (“Este espaço é mesmo fixe!”). A sonoridade camaleónica de “banda ausente” – samples serão sempre uma estratégia excecional – manobrava entre o jazz e música brasileira, embebidos numa elegância descomprometida de bedroom pop (destaque para ‘Mountains’ ou ‘I WANNA LIVE NEXT TO THE SEA’), o que inspirou nos espectadores uma sensação de conforto. Assim, partindo de um aceno à saudade da língua materna neste curto regresso a Portugal (“Tão bom poder dizer a palavra ‘ninguém’ na minha língua!”) e de uma relevante ênfase empática, Raquel terminou a performance numa nota de importante cumplicidade com a plateia. Estavam reunidas as condições para a artista que se seguia!





A pausa imediata após o ato de abertura captara novamente a atenção dos rostos. Com efeito, perante a entrada de Liana Flores em palco, os olhares fixaram-se delicadamente na figura da jovem artista. De vestido vermelho, camuflando-se entre as luzes de tom pastel, cumprimentou silenciosamente a plateia com um afável sorriso. Semicerrando os olhos e segurando uma guitarra acústica, seguiu-se o mote para o início do concerto. ‘Orange-coloured day’ recebeu o privilégio de abrir o alinhamento com a singeleza que a cantora e compositora habituou os ouvintes em ‘Flower of the moon’ (2024). Os músicos que a acompanham – cuja formação engloba também Raquel Martins – acalentam com particular conforto uma sonoridade bela e envolvente. Jazz, bossa-nova e folk são prontamente alinhados num ambiente reminiscente de uma noite quente de verão, o que, por si só, contrastava com a temperatura fria que nos aguardava lá fora. Semelhante cliché musical (“I’m a living cliché”, em ‘I wish for the rain’) apenas ficaria completo aquando da presença, ora expansiva, ora sensível, da voz lindíssima da frontwoman, que elencava versos com um jeito meigo e introvertido. Ao fim de um par de temas, rendíamo-nos devotos à prodigiosa prestação vocal da cantora.
‘Flower of the soul’ é um álbum de uma grande vulnerabilidade emocional – pela perspetiva da compositora e pela perspetiva do ouvinte. O perfil franzino e a disposição simplista do projeto em palco enfatizam-na. Os mínimos detalhes são realçados pela elegância envergonhada de Liana Flores, que enleva a experiência do espectador a um estado de graça (‘Hello again’). De quando em quando, Liana procurava interagir com a plateia – muito embora, facilmente se observava um claro desconforto da sua parte, para além da sua postura introvertida. “Peço desculpa, ainda estou a aprender Português. Por isso, o meu Inglês é claramente melhor”, confessou timidamente, desvendando uma inesperada barreira linguística. A linguagem musical em que Liana Flores se versa recorda-nos, inevitavelmente, de várias personalidades carismáticas do panorama musical brasileiro, com o instrumental a passear-se orgulhosamente por essas memórias coletivas e a revesti-las com uma paisagem mais melancólica (‘Crystalline’). A estranheza perante a associação do calor da voz brasileira à escala de cinzentos do Reino Unido abre margem à inusitada abordagem (‘Now and then’, num momento em duo com o violoncelista). Liana transpõe as suas recordações e emoções de um modo terno, explorando com sensibilidade uma sensação de escapismo ao dia-a-dia. Inconscientemente, entrevemo-nos envoltos num breve sonho tecido por uma tranquilidade familiar.









Magnetizado pela introspeção ocasional, fui-me descurando numa análise mais precisa ao papel do percussionista, imediatamente atrás da cantora. “Toca praticamente quase tudo!”, apresenta-o Liana, referindo-se ao arsenal complexo de percussão que se dispunha ao fundo do palco. A sua destreza rítmica servia de alicerce e batuta para o imaginário da compositora (‘Halfway heart’). Por sua vez, Liana Flores libertava-se num vocal gradualmente acolhedor, com o timbre agudo da sua voz a manifestar-se agradavelmente gracioso. A certo momento, Diogo Carvalho (fotógrafo que me acompanhava) terá desabafado algo como, “Parece um anjo!”. Embora passível de discussão relativamente ao termo utilizado, a verdade é que não destoará muito da perceção de vários espectadores – eu, incluído. Perante a escassez de palavras que melhor a caraterizem, optarei por referir, apenas: que voz sublime!
Em nota menos positiva, a postura tímida (ou envergonhada) de Liana incutira um final mais abrupto ao concerto. A saída demorada e impercetível do palco, aliada à reduzida troca de palavras com o público, provocaram-me uma sensação agridoce. Procurei esquecer esse pequeno episódio, mantendo a memória dessa noite resguardada pela proposta intimista e genuína dos dois concertos a que acabara de assistir. Ao encaminhar-me para a saída do edifício, ia trauteando silenciosamente ‘Nightvisions’ – um dos temas que melhor se encaixaram na minha predileção. Curiosamente, uma boa maneira de me proteger do frio.