Sonus Art Fest ‘24 | Onde Estão Os Teus Amigos, Esta Noite?
A 5 de outubro, Alfredo Fernandes e Diogo Carvalho regressaram a Guimarães para a terceira edição do festival Sonus Art, uma interessante mostra de projetos e artistas emergentes e celebração dos 5 anos da revista online Sound (responsável pela organização do evento). Denotando uma evolução corajosa da equipa, o festival apresentava-nos um cartaz eclético, bastante completo e ambicioso, incluindo projetos nacionais e internacionais em ascensão, mas de inegável importância no atual panorama musical. Alfredo Fernandes narra-nos a sua perspetiva enquanto espectador do festival vimaranense, ainda com a memória fresca da excelente segunda edição. (Todos os direitos reservados)
“É sempre bom regressar aonde já fomos felizes”, disse Hélio Morais, dos Linda Martini, a propósito do seu regresso ao festival Party. Sleep. Repeat., em 2022. Em contexto bastante diferente, repetia para mim, silenciosamente, essa mesma frase ao chegar ao Teatro Jordão, em Guimarães. Regressava ao festival Sonus Art Fest acompanhado pela sensação da surpresa de 2023 que ainda me reverberava na memória!
O longo e estreito corredor do Antigo Sequeiro da Fraterna recebia-nos com um agradável calor humano, ambiente esse que contrastava com as condições adversas exteriores (chovia demasiado), convidando-nos convincentemente a permanecer na pista de dança que ali se formava. Luís Contrário (alter-ego de Luís Rocha, da Saliva Diva), debruçado sobre a maquinaria eletrónica, acalentava com cadências plácidas o público que aos poucos entrava no edifício para se abrigar. Inicialmente, interrogara-me sobre o horário para a sua performance mas, provando-me errado, não só Luís foi capaz de encaixar a eletrónica agorafóbica de ‘músicas de dança para pessoas tristes’ (2023) no espaço estreito, como foi bem-sucedido ao conduzir o público por uma coreografia condizente e confortável. Os samples levavam os espectadores para um estado de comodidade, despoletando as habituais conversas paralelas ao real epicentro da performance – infelizmente, revejo-me como um dos “distraídos” ao decorrer do concerto. Porém, o artista proporcionou uma receção com um cenário digno para aquele início de tarde. A excelência do alinhamento revelou-se suficientemente adequada para a ocasião, ao contribuir para uma descontraída fruição do momento e do ambiente, nos dois pisos do Antigo Sequeiro. Por outras palavras, fez-nos sentir em “casa”.
Durante o período da tarde, o Sonus Art Fest brindou-nos com um trio de showcases de projetos emergentes a par de uma exposição de artistas plásticos, no piso de cima, que aproveitei para espreitar durante os intervalos das performances. No piso térreo, retirada a maquinaria de Luís Contrário, duas figuras sorridentes surgiam em palco, acompanhadas de uma guitarra acústica e banjo. June Carousel, duo composto por Meret Ester e Tricia Collins, apresentaram-se subtilmente descontraídas diante da plateia, com a singela missão de nos serenar e abstrair da carga de água que se abatia no exterior. Tê-lo-ão conseguido por breves instantes! À semelhança da performance anterior, a conversa entre os espectadores permanecia e, perante um folk de índole mais sensível, foi abafando a fruição do concerto. No entanto, mesmo sendo uma sonoridade que não me é próxima, reconheço-lhes uma combinação vocal bastante bonita e frágil, permeando entre os acordes dedilhados nos instrumentos e levando-me, de quando em quando, a abstrair com sucesso das conversas paralelas. Raramente trocando olhares entre si, Meret e Tricia desvendam uma terna cumplicidade e, lentamente, alimentam um carinho do público pela sua proposta sonora, especialmente em ‘September’ ou ‘Magician’, especificamente cantado a três vozes. No fim, uma sensação agridoce recorda-me que este concerto teria uma delicadeza redobrada se as condições climatéricas o favorecessem...
Após nova ronda técnica pelo palco, cinco músicos irromperam do backstage e assumiram a sua posição diante do público, ruidosamente impaciente. Uma atenção súbita é alimentada pela curiosidade dos espectadores. Um par de guitarras subtilmente funk e uma bateria frenética emitem o sinal de aviso: Safari Zone, quinteto lisboeta pop-rock com um travo de psicadelismo e postura indie, cativam desde o início a atenção coletiva. Joe (guitarra), Lamego (baixo), Panda (teclados e guitarra) e Vasco (bateria) distribuem-se em semicírculo reservando o centro do palco para Lua (voz/guitarra). Escusado será dizer que qualquer cliché que advenha da estatura da vocalista é de imediato afastado pelo carisma invejável que nos toma de assalto! A distinta voz contribui efetivamente para a conexão com o concerto e fixa a atenção do público nas mensagens partilhadas ao microfone. Usufruindo de eletricidade inerente, a combinação de influências que a banda demonstra é declaradamente de sucesso – embora recorrente, esta convergência de géneros/estilos musicais é sempre permeável, facilitando diferentes resultados. Como tal, facilmente nos cativam e concentram em si dezenas de olhares atentos aos temas seguinte. Em palco, um vendaval psicadélico (com chuva incluída) ora nos arremessava para pop bem cuidado (‘Supernova’), ora para rock gingão (‘Shoebox’). Ainda assim, foi a voz de Lua que, habilmente, se agigantou entre as incursões da bateria e a subtileza ocasional das guitarras, tomando para si a propriedade do centro do palco como seu pequeno feudo. “Is it indie already?”, questionam Safari Zone, no single homónimo. Pessoalmente, a proposta será suficientemente indie para me cativar à (re)descoberta do projeto.













Entre o compasso de espera pelas tréguas da chuva e a necessária pausa para o jantar, ter-me-á escapado um par de temas do primeiro concerto da noite. Acabei por entrar apressado pelo recinto principal do Sonus Art Fest (isto é, Sala de Ensaios das Bandas, no Teatro Jordão), já os londrinos Children Of The Pope tinham subido ao palco. O quinteto perfilava uma investida enérgica, encabeçada por Juno Valentine (voz/guitarra), Jasper Eade (baixo) e Matilda Harding (sintetizador/voz). A propósito do cartaz do festival, João Lemos, Pedro e Filipe Carvalho (responsáveis pela organização do festival) admitem-se fãs confessos de uma particular sala de espetáculos londrina, The Windmill - berço genial de uma nova geração de artistas ingleses na presente década. Estreito, abafado e suficientemente escuro para afastar turistas incautos, o espaço é dotado de uma aura muito própria. Daí que, estes rapazes, com o alinhamento de bandas que apresentavam, suscitavam querer replicar a sensação vivida entre amigos numa pequena sala de espetáculos. A descarga elétrica e a energia que nessa noite ali se sentia incitavam uma peculiar humidade a enredar-nos, condensando a atmosfera. Até as paredes suscitavam estreitar-se gradualmente! Aos poucos, a lotação do espaço avolumava-se e a proximidade entre os presentes revigorava. A Sala de Ensaios das Bandas não se transformou numa pequena sala de espetáculos, mas não terá ficado longe de suceder. “Estamos em casa!” seria o pensamento mais óbvio de um festivaleiro naquele instante.
Sem margem para devaneios, o quinteto londrino enredou-nos de imediato numa performance eletrizante. O rock acelerado que desvendavam revelava-se de tal modo vibrante que atingiu a plateia de sobressalto a partir de ‘The Seventh Seal’. Jasper contorcia-se violentamente no baixo, com uma expressão corporal bem particular. Valentine, destacando-se pela ágil alternância entre microfone e guitarra (manuseada com significativa voracidade), debitava as letras numa voz singular, ora em falsetto pálido, ora em vociferações que penetravam pelos ouvidos a velocidade sónica. Todos os músicos pareciam divertir-se em palco, e isso verificava-se não só pelos rostos bem-dispostos de Matilda e de Jasper, debaixo do seu chapéu de cowboy, como também pelo à-vontade nos respetivos instrumentos. O público rendia-se à genialidade dos riffs de guitarra de ‘Junkie Girlfriend‘ ou do coro country rock de ‘I Go Downtown‘. Cessada a exaltação caótica de ‘Dying Cold’ e ‘Sailing The Canals’ – como esquecer um vocalista a gritar ao microfone, de cócoras, e uma guitarra a esvoaçar pelo palco? –, sou dardejado por uma ligeira dor de cabeça, denunciada pelos elevados decibéis promovidos pela calibração do som do palco, por sua vez potenciada pela reduzida capacidade acústica do recinto. Ossos do ofício, portanto...
Refrescado da primeira vaga londrina, senti-me tentado a aproximar-me do palco. Uma melodia crescente, branda e delicada, desprendia-se das guitarras de Joseph Nash (guitarra elétrica) e Harrison Charles (guitarra acústica). Ao revolver numa dissonância melódica de curioso contraste, estes vão cedendo margem para o sintetizador de Olivia Morgan anunciar a entrada de Arthur Nolan (voz). Os primeiros momentos do concerto dos igualmente londrinos Blue Bendy (via ‘Goodnight Bobby’) assimilam-nos adequadamente no seu art-rock meticulosamente orquestrado. ‘So Medieval’ (2024), estreia discográfica da banda, elevou as expectativas da crítica especializada face à trajetória e sonoridade que poderão alcançar. Blue Bendy dispõem, de facto, de uma autêntica carga nostálgica. Escutando o álbum, a vertente discreta do pop de bandas como Broadcast caminha de mão dada com a beldade discrepante do post-rock (referência breve a Black Country, New Road). Porém, difícil será não reconhecer que a identidade musical do projeto se encontrará umas centenas de passos a jusante, procurando urgentemente reinventar-se. O concerto desta noite ajudou a confirmá-lo.
No decorrer da performance, tornou-se percetível uma evolução emocional, guiando-nos por uma narrativa instrumental pertinente. A dualidade dissonante das guitarras aprumava-se nos crescendos elétricos. Os trejeitos corporais de Nash, assim como a perspicácia dos acordes (em ‘Mr. Bubblegum’, chega até a brincar com o sintetizador de Olivia) e a excentricidade técnica - porquê usar uma lata metálica para tocar guitarra? –, diferenciavam bastante o músico, dotado de livre trânsito pela lateral esquerda do palco. Olivia, atuando como segunda voz ao leme do sintetizador, permanecia como elemento criativo do projeto ao desenvolver a paisagem utopista por detrás do art-rock dos Blue Bendy. Já o vocalista presenteava a plateia com uma postura particularmente sui generis, icónica e afável. Suspenso no microfone ou em movimentos articulados como uma velha mola de compressão, a sua expressividade física tomava para si o carinho dos espectadores. Todavia, por não primar pela calidez vocal, termina a declamar-nos uma longa narrativa interconectada que se revela, pessoalmente, mais interessante (e compreensível) ao escutar o álbum na íntegra. De ‘So Medieval’ a ‘Sunny’, a voz débil e subtilmente destoada de Nolan foi acompanhada por um avultar do instrumental. O registo íntimo, se bem que expansivo, do sexteto londrino denota a beleza simultaneamente caótica e peculiar, dominada por um controlo técnico sublime. Ainda assim, à semelhança do concerto anterior, alguns detalhes minuciosos e cruciais da sonoridade terminaram eclipsados por uma calibração menos precisa do som. ‘Cloudy’, munido de um equilíbrio bastante exigente entre instrumentos, apresentou-se sem a pompa necessária para irromper como o final que se anunciava “perfeito”. Muito embora, uma sentida ovação fez-se sentir pela sala – os Blue Bendy emergiam como uma excelente memória dos presentes. “Definitivamente, uma banda a tornar a ver”, pensei.























Após um breve intervalo, com as expetativas seguintes já a avolumarem-se, eis que a iluminação em palco surpreende ao mergulhar-nos na penumbra. Quatro sombras começam a movimentar-se em palco e uma sala de espetáculos bem composta recebe-as euforicamente. Aguardava-se pelo concerto dos Maruja, e o quarteto britânico soube tirar proveito dos olhares ávidos. Ao servir-se da sinergia entre o ritmo vincado do baterista (Jacob Hayes) e a suavidade momentânea da guitarra, reservam o espaço adequado para o saxofone de Joseph Carroll crescer e enternecer-nos num êxtase melancólico, mas simultaneamente belo. ‘The Invisible Man’ agita num crescendo narrativo bucólico e emaranha-nos numa atitude punk que Harry Wilkinson (voz/guitarra) vai desfibrando com firmeza física. Em fração de minutos, o quarteto avoluma-se numa autêntica explosão sonora e não há tempo a perder: Carroll apanha-nos em contrapé, ainda a assimilar o início do concerto, e atinge-nos com a sirene de alerta do saxofone. Como batuta de um furacão anunciado, desperta as hostes centrais. ‘Zeitgeist’ serve de cartão de visita para um concerto sonora e fisicamente estimulante!
Neste primeiro encontro de uma trilogia de concertos em Portugal, a atuação dos Maruja em Guimarães destacou-se pela agilidade instrumental com que abordaram o público, resultante de uma ginástica constante em cima de palco. “Ainda só tocaram três temas, mas ele [Harry Wilkinson] já está a escorrer água!”, observei, ao que o Diogo Carvalho [fotógrafo] me relembrou, “Por isso é que vem de calções de banho”. Os temas do quarteto adotam um matiz de cinzentos, caraterístico do post-rock. As narrativas que nos apresentam surgem a preto e branco, em displicência nostálgica, mas não cessam de envergar robustez e eletricidade. Ao vivo, o cenário adensa-se: esses mesmos temas ganham mais corpulência e os próprios músicos apresentam-se com uma intensidade colossal! Wilkinson circula frequentemente junto à plateia, dardejando mensagens de revolta com trejeitos de punk, ou mesmo rap (‘Break The Tension’). Hayes manobra a bateria com coreografias possantes, cabendo a Matt Buonaccorsi (baixo) a difícil tarefa de interligar a inquietação. Carroll, qual flautista de Hamelin disfarçado, não deixa o vocalista isolado, sendo também várias as incursões do saxofonista diante do público. De facto, ficar-me-á gravada na memória a imagem de Joseph Carroll, no cerne do moshpit, de sorriso desafiador a incentivar a trepidante apoteose humana. O público facilmente se deixa influenciar pela adrenalina incansável da banda. O moshpit cresce a cada minuto e os rostos brilham pelo suor da emoção do momento. “Podem baixar as luzes?”, pede mais tarde Wilkinson, amainando subtilmente a atmosfera da sala de espetáculos. A guitarra lânguida e o saxofone assertivo de ‘Kakistocracy’ enlevam os espectadores e guiam-nos por novo crescendo que, a pouco e pouco, tanto surge trágico, como extasiante. Assim que as reverberações suavizam, damos por nós sem palavras imediatas para descrever o turbilhão de sensações que nos enredou. “Imagina que te convidam para um amigável jogo de ténis, mas, no fim, apercebes-te que o teu adversário te enfrenta com um taco de baseball”, desabafou-me no final do concerto Ricardo Santiago, da Eclectic Sounds Radio (ESRadio). Nem mais, Ricardo, nem mais...
O final da noite aproximava-se. Os rostos exaustos dispersavam-se pelo exterior, na busca de novo ânimo. Múltiplos diálogos cruzavam-se à entrada, abrigados da chuva. No bar, que à semelhança da última edição, se posicionava ao fundo da sala de espetáculos, filas intermináveis desde o início das sessões procuravam abastecer-se para os momentos cruciais. “Um sinal de mudança positivo para a organização”, pensei. O número bastante notável de espectadores dava-me uma certa alegria, comparando com a segunda edição do festival. Conferia uma sensação de “casa cheia e feliz”. Os sorrisos refletiam a afabilidade da organização ao receber-nos e a sua vontade de se afirmar. A aposta que faziam no cartaz, ano após ano, parecia não se acompanhar de dores de crescimento – antes pelo contrário! Paralelamente às reflexões de final de evento, fui-me preparando para o último concerto. No entanto, perante o tornado que nos avassalara ainda há instantes, quem seria capaz de superar a fasquia dos Maruja? A resposta parecia-me óbvia, a mim e a muito festivaleiro português...
Com uma calejada rotação por palcos nacionais e internacionais, os MДQUIИД. apresentam-se atualmente como um dos projetos mais afinados do panorama nacional. Discograficamente, ‘Prata’ (2024) suplanta a “sujidade” da pista de dança criada em ‘DIRTY TRACKS FOR CLUBBING’ (2023), arremessando os ouvintes para o reverberar constante e aprimorado da guitarra e as cadências vitalizadoras do baixo e bateria. Ao vivo, o apetrecho sonoro que orquestram explode exponencialmente. Mal o baixo de ‘..’ se faz sentir pelo recinto, todos os presentes reconhecem o chamamento inato e deixam-se seduzir pela crueza do instrumental. Tomás, João e Halison desprendem-se num musculado ritual mecânico. A iluminação, pensada ao pormenor, torna-se também num elemento fulcral do sucesso do espetáculo. Tudo é hipnotizante! Os espectadores esquecem a sua pose contemplativa e projetam-se numa dança mimetizada. ‘body control’ ou ‘desterro’ aprofundam e perpetuam esta sinergia entre e com o público, conduzindo à abstração total da realidade. O krautrock do trio lisboeta é universal, espontâneo e inexplicável.
Porém, e após uma série incansável de concertos da banda a que tive oportunidade de assistir, noto um certo desgaste – a coreografia está lá, nossa e deles, mas o fator-surpresa nos espectadores começa a surtir algum cansaço. As ininterruptas atuações familiarizam os mais distraídos ouvintes, mas vão vagarosamente esmorecendo aquele brilho especial dos que presenciaram a consagração da banda [no festival Vodafone Paredes de Coura]. Talvez, e só talvez, uma pequena pausa nos permita respirar e arrecadar energia suficiente para regressarmos ao cerne do moshpit. Isto terei eu pensado, por instantes. O corpo, esse, não reagiu perante semelhante reflexão. Assim que os célebres acordes de ‘.’ ecoam nos ouvidos, dou por mim a juntar-me à comitiva de vultos e a ceder aos dez ou quinze minutos de regozijo puro. A pista de dança que os MДQUIИД. imprimem é, de facto, infinita, e faz sentido vivê-la com toda a intensidade que o nosso corpo e mente ainda nos permitem. “Onde estão os teus amigos, esta noite?”, pergunta, de facto, James Murphy em ‘All My Friends’ [LCD Soundsystem]. Naquele recinto, que gentilmente apelidamos de “casa” durante umas horas, eram vários. Reencontremo-nos, então, no próximo ano...























