Missa Dos Laicos de Abril (Saliva Diva) | Uma Laica Liturgia Mensal

© Aitor Amorim

No dia 21 de abril, a editora Saliva Diva organizava a edição do respetivo mês do seu ciclo de concertos “Missa dos Laicos”, matiné composta por um trio de apresentações de projetos associados à editora portuense. Desde março a decorrer com localização fixa no Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery, ao invés do anterior cariz itinerante por vários espaços de espetáculos do país, compunham o elenco de bandas dessa mesma tarde os Galgo, os Palankalama e Daniel Catarino. Os três projetos subiam ao palco com lançamentos recentes, o que se revelava um excelente pretexto para assistir à prestação das bandas em questão. Alfredo Fernandes, a convite da Saliva Diva, deslocou-se a Matosinhos e relata-nos a perspetiva deste evento “não-religioso de domingo”.

 

Para quem chega pela primeira vez à “congregação salivante” da Missa dos Laicos, agora a decorrer com paróquia fixa em Matosinhos, depara-se com um palco em cima do palco, podendo o público subir para cima deste, o que permite um contacto íntimo entre músicos e espectadores, contrariamente à impessoal sensação destes espaços. “Estamos em paralelo, ou perpendicular, em cima do palco. É incrível!”, confessava Alexandre Moniz (voz/guitarra/sintetizador), a meio do concerto. O primeiro espetáculo da tarde era dos lisboetas Galgo. Em nota pessoal, acredito que talvez apresentem máxima vivacidade nas salas de menor dimensão, onde o experimentalismo de matemática vibrante agiganta-se, delineando o potencial que a banda ainda conserva, quatro discos volvidos. Todavia, mesmo perante a intimidante profundidade do Teatro Municipal de Matosinhos Constantino Nery, apercebi-me que a longevidade da carreira e identidade que desenvolveram merecem, de facto, pousos bem mais significativos.

Sob um jogo de luzes minimalista, mas eficaz, os quatro elementos dispuseram-se num compasso sereno e musicalmente voraz. O público não tinha motivos de tédio: entre os que conheciam a banda e os que, movidos pela curiosidade, observavam atentamente o concerto (Pedro João, dos Palankalama, admitiu serem uma agradável surpresa, desconhecendo inicialmente o projeto), um a um nos fomos rendendo numa dança indecifrável. As guitarras de Alexandre e Miguel Figueiredo digladiavam-se ao desafio, em prestação desgarrada e interminavelmente emaranhada, servindo-nos temas como “Pensar Faz Emagrecer” ou “Bambaré”. Por outro lado, Joana Batista (bateria) destacava-se pela firmeza e segurança nas baquetas. De sorriso no rosto, não se intimidou pela estridente barreira encenada pelas guitarras e sintetizadores. “Estamos a apresentar o último álbum”, diz Alexandre Moniz, preparando o sintetizador. Os temas de “Denso” (2024) irrompem pelo concerto com relativa frescura – é o fator novidade –, mas o instrumental corpulento que enaltecem desenfreadamente arrebata-nos de imediato. As músicas surgem definitivamente “densas”: “Vapor” ou “Nadamar” não poupam no enleado novelo. Ao quarto registo discográfico, os Galgo exploram os confins de um experimentalismo claustrofóbico, ainda que usufruindo do seu caráter habitualmente festivo. Mesmo nos instantes em que os decibéis abrandam, a atmosfera assoma-se ofegante e, defronte da banda, o público demonstra-se radiante. Quanto mais “eletricidade” se desprende, maior a alienação corporal. Por sua vez, os músicos resguardam-se numa caricata inocência e agradecendo a nossa entrega. Uma pequena correção: nós é que agradecemos por este início de matiné estonteante!

© Aitor Amorim

Já no piso superior, depois do primeiro espetáculo, fomo-nos posicionando confortavelmente em torno de um conjunto de instrumentos colocados com particular minúcia. Bateria, contrabaixo, guitarra e braguesa distribuíam-se em círculo, no meio do espaço. Sentados ou de pé, assistíamos aos movimentos dos elementos dos Palankalama enquanto se preparavam para a continuação da “celebração litúrgica”. De olhares cruzados entre si, os artistas presenteavam-nos com uma sessão em formato de 360º – uma experiência de relativa raridade, e acompanhada de uma dinâmica que estimula uma análise contínua por parte do espectador.

Progredindo da anterior prestação “elétrica” para a sensibilidade deste quarteto, habituamos os ouvidos à nova proposta a partir do suave toque proveniente da braguesa, que nos embala com a calma devida. O som particular das cordas, magistralmente dedilhadas por Pedro João (como se de uma extensão do corpo se tratasse), confere uma personalidade muito própria ao projeto. Por seu lado, a complacência facial de Aníbal Zola (contrabaixo) e a confiança de Afonso Passos (bateria/percussão), que atribui uma presença viva ao concerto, auxiliam na edificação deste semblante sonoro. Curioso pelo evoluir do espetáculo, o espectador vai desferindo uma atenção ora reflexiva, ora fascinada. Vários vultos vão alternando a sua posição, em busca da melhor perspetiva. “É realmente interessante: cada um vai girando à nossa volta e escolhe o que quer ouvir com mais intensidade. Cada um vai ouvindo o seu som, portanto”, graceja Pedro João. Deste ponto de vista, não está longe da realidade...

No embalo de “Lama Pela Anca” (2022), do qual saem faixas como “Dubaú” ou “Bailão”, o projeto dividido entre Lisboa e Porto oscila numa vulnerabilidade musical que nos remete para além do território nacional. A tradição africana (com referências subliminares à morna), a música latino-americana, o jazz e o blues, juntamente com a cultura popular portuguesa, são cuidadosamente convocados, desdobrando-se em paisagens interpretadas de maneira distinta por cada um. A banda narra-nos, mediante uma linguagem musical singular, uma realidade que nos escapa na pressa do dia-a-dia. À semelhança de uns Dead Combo, ou de uns mais recentes mutu, abraça-nos uma sensação de multiculturalidade, de memórias de um passado português além-fronteiras. “Desembarque” exemplifica melodicamente a anterior mensagem, cadenciada sem urgência e concentrando em si o foco crucial do público. “São mesmo músicos de ‘mão cheia’”, dei por mim a pensar, rendido à prestação.

© Aitor Amorim

Regressando ao auditório/cineteatro, um baixo sinuoso fazia questão de se ouvir e de nos chamar para o terceiro e último concerto. Daniel Catarino (guitarra/voz) e Manuel Molarinho (baixo), de face disfarçada sob a sombra de um boné, entretinham-se nas cordas em divertido aquecimento. Composto o espaço, um rock elétrico cumprimenta-nos com boa-disposição. Em clássico formato de guitarra-baixo-bateria, o projeto em nome próprio de Daniel Catarino ostenta uma versão em esteroides do que, inocentemente, as gerações mais novas poderiam apelidar de “dad’s rock”. Reforço a palavra ‘inocentemente: como frontman, Catarino emana um carisma tão particular, com mestria técnica e um humor requintado, aprimorado álbum após álbum.

O músico expõe uma fiel apresentação de “Megafauna” (2023), um álbum que através de narração exímia nos remete para a perspetiva fatigada da atualidade e também do próprio músico. Este é um disco que tenta responder a várias questões que as crises de meia-idade procuram levantar – no caso, com semblante chistoso, versando-se na crise de um país em meio século de liberdade. O segredo por detrás da proposta aliciante reside nas letras ácidas, cáusticas, proferidas com simultânea seriedade e jocosidade. Entre peixes em vias de extinção, pescados com total indiferença, e clubes de vídeo que não passam de mero projeto no papel, Catarino adorna humoristicamente uma sonoridade que emerge negra, fruindo de uma voz de interessante dicção. Para os estreantes na proposta, breve passagem por temas como “Até O Mais Honesto É Guloso” ou “Berço de Ouro” servirá para arrancar sincera gargalhada, seguida de preocupação urgente...

© Aitor Amorim

Tecnicamente, ao vivo, os três artistas são, de facto, contagiantes. Assim que surge pretexto, a guitarra dispara e o frontman, que até então se destacava pela mordacidade, liberta-se em exaltação elétrica sobre as cordas. Quem sabe, talvez até demais... “A partir cordas, Catarino? Clássico”, dispara Molarinho, enquanto o guitarrista se debate com o inesperado contratempo. Não deixando o baixista sem resposta, Catarino prossegue o seu registo e apela ao caráter único do momento: “Mudar uma corda em direto. Não aconteceu ontem, não vai acontecer para a semana. É inédito!”. A cumplicidade entre os dois artistas abraça a plateia em íntima “comunhão” e, aproximando-se o final do espetáculo, ambos se avultam nos instrumentos nas suas mãos. Daniel Catarino sustenta a guitarra como se de um mero brinquedo se tratasse, evidenciando continuamente um semblante em esforço e uma extenuante ginástica braçal, concluindo a matiné de modo exemplar. Estava assim concluída a liturgia mensal, deixando o público expectante pela próxima laica celebração. Oremos! 

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