Party. Sleep. Repeat. ‘24 | Dancem, Dancem, Dancem!
© Gonçalo Nogueira
No dia 27 de abril, o festival Party. Sleep. Repeat. retomava mais uma edição em São João da Madeira. O evento, com um marcante cariz solidário, tem decorrido desde 2013 na Oliva Creative Factory, repartindo o alinhamento por três espaços distintos (Terraço, Alameda e Sala dos Fornos). Com cartazes gradualmente maiores e bem delineados, o festival sanjoanense tem-se alicerçado como uma proposta pertinente de descentralização cultural – o que terá começado como uma homenagem a um amigo em comum dos elementos da organização (Luís Lima), é, agora, uma celebração da sua (e nossa) paixão pela Música. Alfredo Fernandes, visitante regular do festival, relata no artigo que se segue a sua experiência nesse dia certamente especial.
Ao subir a escadaria para o terraço, deparei-me com uma multidão concentrada essencialmente perto da janela. Por receio da instabilidade climatérica, a organização decidira (e bem) alojar o Palco Terraço no interior do edifício, como precaução. Tive pena de não poder disfrutar da bonita panorâmica, enquanto assistia aos concertos – por sua vez, pequenos grupos espalhavam-se pelo exterior, confraternizando, isolados do espetáculo que decorria... Infelizmente, não me foi possível assistir ao concerto de Meta_, mas em conversa com demais espectadores, inteirei-me do momento singular que terá sido o seu concerto.
Em palco, três músicos espraiavam placidamente uma “conversa”. Velho Homem, projeto formado por Homem em Catarse (Afonso Dorido) e Old Jerusalem (Francisco Silva), usufrui de uma sinergia de riffs proferidos por duas guitarras que nos cumprimentam com uma beleza de trato simples. O seu álbum de estreia, “Espuma dos Dias” (2023), envolve os ouvintes numa pautada introspeção. De olhos cerrados, resignam-se a apressar a catarse e entregam, assim, uma expressão bucólica e um intimismo à sala, contrariando, certamente, a agitação que se instalava. As conversações paralelas e as rotas cruzadas de vultos começavam a perturbar uma atenta apreciação da sonoridade, já de si sensível e nem o avolumar das fascinantes cadências elétricas esvanecia o barulho dos espectadores, o que me afastou de uma possível imersão musical. Subtilmente incomodado, dou por mim a contemplar a panorâmica do terraço, no exterior, acompanhado pelo bonito instrumental do trio, lá ao fundo...
Regressando ao interior da sala, atraiu-me o som metálico dos pratos de uma bateria. O projeto seguinte subira, entretanto, ao palco do terraço, já rodeado de uma plateia que dificultava a visão dos recém-chegados. Minus & MrDolly oferecia-nos um repertório com passagem pelo recente lançamento, “Giant Stops” (2023), diante de uma inquietação palpável. Referência direta a um disco magnânimo do jazz (“Giant Steps”, de John Coltrane), a adição discográfica compõe uma reviravolta na sonoridade do projeto, ao afastar-se substancialmente dos samples eletrónicos, reminiscentes da época dourada do hip-hop nova-iorquino (“Man With A Plan”, de 2018).
Fazendo-se acompanhar de banda, Hugo Oliveira assume a dianteira na maquinaria eletrónica, com postura relaxada. O saxofone adornava suavemente o sintetizador, à medida que a bateria se destacava exímia. O gingar inteligente de João Alves (bateria) é certamente um reflexo da percussão de jazz, mantendo com persistência o contacto visual no instrumento à sua frente. “Deitado na relva, isto era bem fixe”, escutei alguém dizer, a respeito da proposta musical. De facto, o ritmo descontraído permitia “desligar” momentaneamente do senso de realidade, aproveitando para tal a redução do fator ruído. Ao recuar a “Broken Hearts Make Broken Beats” (2021), a banda afasta-se do registo até então, conferindo uma leveza dançável ao concerto. Os espectadores respondiam ao apelo, baloiçando em sintonia. Mais vivazes, os músicos transpunham eficazmente o instrumental eletrónico para o contexto do concerto, evidenciando-se um término de espetáculo surpreendente e que conquistara, sem dúvida, vários novos ouvintes. Admito-me como um dos visados.
Transitando para a alameda, aproximando-se da barreira do palco secundário, o público espreitava por entre os meandros do cortinado, num misto de curiosidade e expetativa. Francisco Lima (voz), Raul Mendiratta e José Miguel Silva (sintetizadores) encaminhavam-se sem pressa pelo cenário, ovacionados pela plateia que gradualmente se acercava. Os Conferência Inferno vêm-se habitualmente escoltados por uma sensação de estranheza. Um conflito visível entre a beleza sideral da aparelhagem eletrónica de Mendiratta e a prestação rouca e em esforço de Francisco aludia ao cariz soturno do final da década de 70, com subliminares apontamentos de fusão entre projetos como Suicide e Joy Division. O instrumental é amplo e assente em produção minimalista reconfortante (“Sina”), já as letras agorafóbicas versam-se numa espiral lírica agoniante. Porém, os nossos ouvidos teimam em ignorar este aspeto e compelem o restante corpo na primeira e desenvolta coreografia do dia.
Ao vivo, o trio portuense aparta a fruição da versão esquiça de estúdio. “Radiação” ou “Auto-Pânico” evocam um frenesim autocontido, centrado num vocalista que aos poucos se vai desprendendo do microfone e despeja mensagens apocalípticas de um futuro-mais-que-atual. Pesarosa e taciturna, a sonoridade dos Conferência Inferno narra-nos a versão distópica da realidade (de modo literal, não houvesse um tema chamado “Distopia”), interpelando-nos numa introspeção momentânea. Não durará muito a referida reflexão, pois de imediato acompanhamos o frontman na sua singular prestação. Refrões viciantes são entoados em conjunto com a banda e terminamos a dançar na esperança de que o “amanhã” seja, talvez, melhor do que “hoje”. “Temos ‘repeaters’ aí na casa?”, atira José Miguel, dirigindo-se claramente a um grupo específico na dianteira do recinto. Recuperando brevemente temas como “Ausente”, saltam da sonoridade de “Pós-Esmeralda” (2023) para a festividade satânica de “Ata Saturna” (2021). “O Conjunto Corona tem de fazer um cover de Black Sabbath. É um desafio para vocês!”, diz de novo José Miguel, assumindo a comunicação com os espectadores. Escusado será dizer que, com muita pena minha, o desafio não foi cumprido... Para finalizar, o trio portuense brindou-nos com o regresso ao EP “Bazar Esotérico” (2019), através de “Apocalipse”. A título pessoal, não terei memória de um tema com refrão tão hilariante e magnânimo como o desta faixa (“O teu Deus é ateu, e o meu já morreu/Excesso e apocalipse, foi o que ele me disse”). “Lembrem-se: 25 de abril, sempre! Fascismo nunca mais! Sejam amigos, sejam solidários”, dirige-se, a terminar, José Miguel Silva. Uma mensagem estranhamente positiva para o grupo em questão, mas que convém manter presente nos dias de hoje!
Terminei por não assistir ao concerto dos belgas Echoes of Zoo. Depois da sessão do trio portuense, decidira jantar e recuperar para os espetáculos restantes da noite. À distância, pude “entreouvir” as guinadas repentinas do saxofone de Nathan Daems permeando um jazz assente no “humor” do referido instrumento. Recuperado das várias horas em pé, encaminhei-me de novo pela alameda da Oliva Creative Factory. O ambiente estava tranquilo, mas não por muito tempo – seguiam-se os Hetta...
No compasso de espera, um “eclético” DJ vai dividindo a atenção entre ícones do metal e do pop, arrancando, a título de exemplo, amorosas danças a dois ao som de “Smooth Operator”, de Sade. Solto uma gargalhada, perante o cenário... Assim que o quarteto do Montijo irrompe do backstage, as cabeças giram e cravam a atenção de imediato nos músicos. Alex Domingos (voz) dirige-se à dianteira do palco, em cima das grades, e clama pela aproximação dos espectadores. Em fração de segundos, fita fixamente a alameda iluminada e dispara em nossa direção: “Obrigado por terem vindo. Dancem, dancem, dancem!”. Estas ordens de comando colocam os desatentos em total sentido. A guitarra brande em estática, o baixo prepara-se, impaciente. João Portalegre (bateria) dá o mote de despejo da sanidade dos espectadores e, desde logo, abraça-nos um furacão em fúria e desgovernado.
Revolvendo no cariz mais hardcore e noise do punk, post-hardcore ou grindcore, e precedidos por uma voracidade elétrica e fama arquitetadas essencialmente em concertos, os Hetta manifestam-se como força incontestável de imprevisibilidade. Tudo é possível em palco, e no moshpit, desde que mantido o respeito! A guitarra brada em histeria e a vociferação de Alex atinge o mesmo nível de decibéis. Lá atrás, entrevemos os braços do baterista a esvoaçarem a velocidade estonteante. O espetáculo processa-se a um ritmo avassalador! O público, que se mantém firme e enfrentando a chuva incómoda, aceita o repto inicial e torna-se assim elemento imprescindível ao caos sonoro instaurado pelo quarteto. Quem também se apressa em “dança” é o próprio vocalista, que percorre o espaço de ponta a ponta em autênticas acrobacias (recorda-me, vagamente, a prestação individual de Brendan Yates, dos Turnstile). Perante tamanho alvoroço, por mais palavras a que recorra para descrever o concerto, pressinto que seria sempre um eufemismo do que realmente observei... Cessadas as hostilidades em pouco mais de meia-hora, tornam a agradecer a persistência do público e afastam-se, consolados, da apoteose que provocaram. “What a wonderful world!”, desabafa ironicamente Louis Armstrong, no fim do espetáculo. O DJ é mesmo “eclético” ...
Abertas as portas para o palco principal (Sala dos Fornos), notei uma adesão bem acentuada de espectadores junto às grades. Inicialmente alheio ao motivo, preferi focar-me na bola de espelhos e no cão de louça, em palco... Uma ovação eufórica fez-se sentir pelo recinto, à medida que cinco músicos surgiam em cena. Cingir-se a um registo com traços muito particulares, como o é a música tradicional portuguesa, é relativamente difícil. Porém, os Expresso Transatlântico aproveitaram o embalo do revivalismo desta tradição, destacando-se pela subtileza – “Ressaca Bailada” (2023), torna notória uma sensibilidade de peculiar ternura, ainda que seguramente adulta! Em palco, a postura dos músicos agiliza a elaborada subtileza das suas composições, o que nos cativa de imediato.
No decorrer do concerto, um certo grau de histerismo “teen” apossa-se das fileiras frontais. Parte do público concentrava-se essencialmente numa única figura. A cada fio de cabelo esvoaçante de Gaspar Varela (guitarra portuguesa), suspiro atrás de suspiro ecoava na sala de espetáculos. “Só quero saber mesmo dele”, confessara alguém a meu lado, seguindo-se um berro ensurdecedor: “GASPAR!!!!!”. Questiono-me qual o motivo de semelhante fenómeno “adolescente” – que de adolescente terá muito pouco... Possivelmente alheio ao fanatismo em seu redor, o guitarrista desdobra-se com a naturalidade e gabarito de um artista com carreira bem alicerçada. Prova ser músico de excelência, ainda jovem, arrepiando plateias com um dedilhar preciso (destaco o medley que iniciou com a versão de “Verdes Anos”, de Carlos Paredes).
Em genuína cumplicidade, Gaspar e Sebastião Varela (guitarra elétrica) conferem um dinamismo familiar ao projeto e de importante relevo. Os dois irmãos desafiam-se mutuamente, entregando-nos momentos de beleza singular. “Porque Nada tem um Fim” ou “Barquinha” sublinham um afagar sedoso das guitarras, enternecendo-nos. O cuidado melódico aborda os espectadores com delicadeza e tenta não exagerar nos meandros instrumentais. Contrariamente, quando suscitam impelir-nos a dançar, apartam a suavidade anterior em prol de um ambiente mais festivo. Pessoalmente, considero que a sensibilidade que transmitem com suficiente perícia é transbordada, julgo eu, nesses momentos talvez excessivos... mas festa é festa e, para aquela plateia, a ânsia de os ver (e ouvir) de novo é considerável.
Nos últimos dois anos, os Pluto têm regressado aos palcos com um granjeado estatuto que mereciam desde o início. Movidos pela nostalgia e notoriedade de “Bom Dia” (2001) – mais de vinte anos depois, o qual poderemos apelidar de “disco de estreia” –, não seria de estranhar a multidão que se reunia na Sala dos Fornos. Manel Cruz (voz/guitarra), comunicador nato a quem se lhe reconhece um humor imparável, agarra os meandros do palco com a personalidade extrovertida e com a felicidade de quem regressa, finalmente, a casa (o músico é originário de São João da Madeira). “’Tá tudo? Muito obrigado, malta. Até à próxima!”, cumprimenta o frontman, ainda mal havia tocado a primeira faixa. Com semelhante boa-disposição, este era o prenúncio de um excelente concerto...
Acima de tudo, o quarteto portuense emana rock pelos poros. É suado e pesado, mas levita-nos consoante uma lírica que recupera a sagacidade que Manel Cruz já imprimia em Ornatos Violeta e adotou como marca pessoal. Aliás, não será à toa que os refrões de “Só Mais Um Começo” ou “A Vida Dos Outros” perpetuaram na nossa memória, sem mazelas de crescimento. Trazemos essa certeza no bolso e juntamo-nos aos músicos em coro por autênticos hinos que nos chegaram até hoje – gerações de pais e filhos, ligados pelo afeto às músicas do projeto, permitiam aos músicos entrever um rejuvenescimento notório do seu público. Como corresponder a esse “amor” transgeracional de uma plateia expectante? De um lado, uma banda de portento abarcava a difícil tarefa de coordenar a eletricidade e formosura “rockeira”. Peixe (guitarra) e Ruca Lacerda (baixo) vão assumindo uma preponderância melódica, resguardando a figura carismática do vocalista com uma sensibilidade artística. Por sua vez, um frontman em tronco nu que prazerosamente passeava pelo palco e irradiava um encanto muito próprio. “O Iggy Pop à beira do Manel é um menino”, desabafava alguém, a meu lado. Excetuando a postura nervosa do primeiro, talvez não seja um argumento descabido.
Após duas décadas de interregno, e numa segunda vida que se augura de sucesso, os Pluto brindam-nos com temas inéditos. De “Túnel” a “Quadrado”, ou ainda “A Minha Vez De Construir”, o vocalista abranda a postura extrovertida. Por sinal, apercebo-me que os novos temas da banda carregam, de certo modo, um senso de maturidade que em “Bom Dia” se verificava mais irreverente. Ainda assim, não deixando de reconhecer tratar-se de composições fascinantes, os espectadores prontamente se rendem com maior facilidade perante faixas como “Sexo Mono” ou “Convite”. Com direito a encore, a banda portuense despede-se com pompa de um recinto preenchido e extremamente satisfeito. “Chegamos ao fim, malta. Gosto imenso das vossas cabeças. Até à próxima!”.
Se menos é, realmente, mais, confesso que os Conjunto Corona deverão ser merecedores “campeões” nesse aspeto. O carisma de LOGOS e David Bruno preenche orgulhosamente o espaço desprovido de material técnico – transbordando instantaneamente para um público sempre efervescente perante as suas prestações. De Gondomar a Cucujães, a dupla de hip-hop de Gaia mantém um perfil e postura irrepreensíveis, cimentados com um sentido de humor invejável. “O Manel Cruz falou neles, mas nós trouxemos: palmas para os Rissóis do Costa!”, clama David Bruno, degustando relaxadamente um rissol, em pleno espetáculo.
Assistir a Conjunto Corona na região norte do país atribui uma aura caraterística ao momento. Todo o alinhamento estudado a dedo pelos MCs é uma assumida “private joke” nortenha! Do Rei dos Catalisadores ao Macaco Líder, ou ainda o Bruxo de Fafe, várias figuras da mitologia urbana do Norte são consideradas atores neste elenco de luxo. Se Expresso Transatlântico deu mote para uma coreografia festiva, e se Hetta incendiou de vez essa pista de dança, o projeto gaiense arrancou da plateia uma euforia movida pelo absurdo. Não deixa de ser fenómeno justificado: embora assentes em samples subtilmente simples, temas como “Perdidos Na Variante” ou “Santa Rita Lifestyle” ostentam letras memoráveis pelo seu caráter alienado (ainda que realista). Mesmo o mais recente lançamento, “ESTILVS MISTICVS” (2023), afastado da perspetiva urbana da Área Metropolitana do Porto e versando-se nas crenças populares do interior, preserva (e reforça) a natureza do projeto. Todo o concerto é uma autêntica piada sofisticada pelo nonsense do momento, potenciada, a título de exemplo, pela própria figura do Homem do Robe!
Aproveitando a plateia ao rubro, David Bruno e LOGOS despedem-se de São João da Madeira com um regresso aos primeiros registos, recuperando a sempre requisitada “187 No Bloco”. Saltando em palco, e também fora deste, manifestam o entusiasmo recíproco dos espectadores. “Oitenta por cento do concerto são vocês!”, confessa David Bruno, “’Ca p***a de festa... Vam’bora!”, acrescenta LOGOS. Porém, o final assumiu um tom inesperado: “Uma salva de palmas para quem esteve antes de nós, e para quem vem depois de nós. Mas, acima de tudo, uma salva de palmas para o Luís Lima”. Um gesto extremamente bonito, proferido com a seriedade necessária e vindo, talvez, da pessoa mais improvável. Pensando bem, se se cantou, dançou e comeu rissóis neste festival, deve-se essencialmente à paixão pela Música de Luís Lima. Sem dúvida, para o ano repetimos o brinde...