Mão Morta apresenta ‘Viva La Muerte!’ | Cada Vez Mais Longe De Um Sonho Utópico
© Diogo Carvalho
A convite do Theatro Circo, como forma assinalar os 40 anos de carreira e os 50 anos de Democracia em Portugal, Mão Morta, banda histórica bracarense, conceberam o seu recente álbum de estúdio, ‘Viva La Muerte!’ (2025), como uma produção concetual urgente. Desde o lançamento do álbum, a banda tem apresentado esta produção em várias salas de espetáculo do país, com destaque para Casa da Música (Porto) ou Centro Cultural Vila-Flor (Guimarães). A 19 de abril, última data da referida digressão nacional até então, a banda bracarense subiu ao palco do auditório do Ponto C – Cultura e Criatividade, em Penafiel. Alfredo Fernandes narra-nos a sua perspetiva de um concerto ímpar, acompanhado pelas fotografias de Diogo Carvalho. (Todos os direitos reservados)
“Viva La Muerte!”. Projetadas no palco, três palavras de perturbadora magnitude recebiam os espectadores que entravam no auditório do Ponto C - Cultura e Criatividade, em Penafiel. O espetáculo dessa noite (com lotação esgotada) não conferia expectável novidade aos fiéis seguidores da banda que se haviam deslocado propositadamente. Porém, a dimensão onírica de semelhante manchete encarava-nos com um sarcasmo contundente. Mão Morta, histórica banda bracarense crucial na Música portuguesa, apresentava-nos o seu mais recente trabalho discográfico, ‘Viva La Muerte’ (2025). A convite do Theatro Circo (Braga), como forma de assinalar, em 2024, os 40 anos de carreira do projeto musical e os 50 anos de Democracia em Portugal (25 de abril de 1974), desenvolveram um álbum de génese concetual, que mantém como pano de fundo uma temática sensível e urgente à instabilidade social e política que nos circunda.
Assim que a cortina se abriu, silhuetas em palco encaravam-nos com inquietante seriedade. Dez músicos, de indumentária de cariz militar (ou operária), dispunham-se rigidamente em duas fileiras subtis. Os vários pares de olhos que nos perscrutavam rapidamente instaram uma atenção imediata dos espectadores. Um rufar de tarola e um piano crescente acautelavam a progressão de um instrumental que se adivinhava (ilusoriamente) magnificente. A sumptuosidade musical que se avolumava assemelhar-se-ia, por certo, a um beliscão incómodo. Da lateral do pelotão, um coro de quatro vozes irrompe de súbito. “Em Deus, por Deus, com Deus, viva!”, exclamaram, em uníssono (‘Deus Pátria Autoridade’). Um pulso gélido cresceu no desconforto palpável dos presentes.







A discografia dos Mão Morta é, indubitavelmente, um caso singular no panorama nacional. Afirmar que este é um projeto de matriz rock será, à partida, um cliché falacioso. São bem mais do que isso, sendo possíveis, talvez, breves paralelismos com outros projetos, nomeadamente a irreverência dos americanos Swans. Disco após disco, vislumbra-se uma sensibilidade artística invulgar, permeável a uma contínua renovação de expectativas. De modo praticamente transversal, a voz grave e cavernosa de Adolfo Luxúria Canibal ergue-se como a de um inusitado narrador de uma realidade crua, não-paralela. A visão pormenorizadamente escatológica, socialmente visceral e até, por vezes, erótica, sobressai nas letras de caráter surrealista. Porém, nessa noite, o frontman abandonou a sua narrativa exacerbada (ainda que assertiva). Sisudo, de faixa escura no braço e afastado do pelotão de músicos, personificou habilmente a temerosa imponência de um regime autoritário.
Do alto do seu palanque, Adolfo Luxúria Canibal assumiu em pleno os trejeitos verbais e corporais de um Grande Líder do Povo: um ser que concentra em si todos os atributos governativos, o escolhido profético pela Divindade, um fetichista do ódio mesquinho e do cultivo do medo (“Só há lugar para um pensar/Qualquer outro é traição”, em Ratoeira Bélica). Adornado de um olhar penetrante e escancarado, se bem que trocista, cambaleava e dançava uma coreografia errante enquanto nos proferia uma miríade de falácias populistas que nos perturbava continuamente (“Só a voz do líder é verdadeira/As outras são mentiras elitistas e cosmopolitas”, em ‘Pensamento Único’). A sua eloquência enterrava os espectadores na profundidade do espanto. Por sua vez, a monumentalidade do instrumental submergia-nos numa claustrofobia ideológica. “Viva o Líder, viva a Nação!”, proclamava o frontman em sussurro rouco, seguido de uma enorme risada.
‘Viva La Muerte’ inspira-se tenuemente no filme com o mesmo nome, de Fernando Arrabal (1971), o qual versa sobre a opressão fascista e autoritária do General Francisco Franco durante a Guerra Civil, em Espanha. Reforce-se a expressão “tenuemente”: de facto, o foco da obra que a banda dispõe em palco é absurdamente amplo, e termina por nutrir de uma panóplia de referências históricas. Do fascismo europeu do século XX aos movimentos militares da América Latina – Brasil de ‘64-’85, Peronismo argentino e autoritarismo do General Augusto Pinochet, no Chile –, com leves carícias ao trumpismo nos EUA, Mão Morta manobram com excelência uma teia de críticas exacerbadas ao esplendor da pequenez da humanidade.










“Boa noite. Sejam bem-vindos ao espetro do fascismo”, apresenta o vocalista com um carisma corrosivo. Em seu redor, a sonoridade assume um portento monumental (‘Corre Corre Corre’), num óbvio piscar de olhos ao fetiche dos regimes autoritários por música grandiosa (recorde-se a veneração de Adolf Hitler por Richard Wagner). Miguel Pedro (bateria/electrónica) e António Rafael (teclas/eletrónica) concederam ao álbum um semblante superficialmente sinfónico, permitindo ao ascendente rock de ‘Corações Felpudos’ (1990) ou ‘Mutantes S21’ (1992) permanecer nos bastidores. Muito embora, a percussão de Miguel Pedro ou Ruca Lacerda (guitarra/bateria) e a adição do coro, encabeçado por Fernando Pinheiro, conferem o dramatismo necessário para a mensagem essencial do concerto. O coro, em específico, compõe um elemento invulgar na discografia de Mão Morta (para não dizer raro) e que os aproxima subtilmente do perfil orquestral da fase mais recente dos The Bad Seeds, de Nick Cave.
À medida que nos aproximamos do término do concerto, assoma-se com maior pertinência a importância deste: um ensaio desconcertante sobre o caráter cíclico da História e a podridão política da atualidade (‘A Liberdade’), no qual as palavras dilacerantes clamam por atenção ininterrupta. O cenário diante de nós estará longe de ser um pesadelo distópico – aliás, George Orwell não nos passa despercebido, com a sua obra visionária ‘1984’ (publicada em 1949). Neste quesito, o frontman revolve incansável nos conceitos basilares do medo, do ódio e da inveja alheia, que alimentam o vácuo cognitivo e o desejo repetitivo do Homem pela submissão e culto a um só líder (“mesquinha massa amorfa que range os dentes de ódio e inveja”, em ‘Ressentidos e Ressabiados’). Durante sensivelmente uma hora, as letras sublimes de Adolfo Luxúria Canibal destaparam por completo o fantasma de um futuro ainda possível, drenado por raiva indiferente, vassalagem divina e tentativas de militarização do pânico (‘É Proibido’).
Assim como no álbum, o tema homónimo encerrou o concerto em nota mais positiva. Como refrão, “Ninguém nasceu para ser servil e morrer” transforma uma excelente retrospetiva ao regime do medo num mantra de um sonho de Abril. Mas não nos iludamos: precisamos de motins, de gritos “Have a fascism-free life”, como dizia um sample, a meio do concerto, pois, em pleno século XXI, estamos cada vez mais longe desse sonho utópico, infelizmente.









