Dois Dedos De Conversa… | 20 Anos De Xmas Rock Fest
© Diogo Carvalho
A 21 de dezembro, Alfredo Fernandes conversou com Nuno Sousa e Hugo Ferreira, da Cosmonaut, a propósito da recente edição do festival Xmas Rock Fest, em Penafiel. Para assinalar os vinte anos do festival e da promotora, elencaram um cartaz composto por uma diversidade de sonoridades, representativa do panorama musical atual, em Portugal: Unsafe Space Garden, Don Pie Pie, Solar Corona Elektrische Maschine e dUASsEMIcOLCHEIASiNVERTIDAS foram as bandas que subiram ao palco da Casa da Caturra, no Ponto C (Penafiel). Na presente conversa, os três debateram sobre o historial do festival, o papel da promotora enquanto veículo de divulgação cultural na região e a importância de uma comunidade com laços muito próximos na preservação destas iniciativas.
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Alfredo Fernandes: Bem, antes de começar a nossa conversa, gostava de vos dar os parabéns! São vinte anos, duas décadas. É uma data importante de se assinalar! Qual é a sensação?
Nuno Sousa: Além do cansaço, de achar que isto, hoje em dia, pesa mais nas pernas? (risos) É um pouco cansativo. No entanto, a sensação é a de que parece que começou ontem. Na verdade, vinte anos assusta mais no número do que propriamente no tempo. Passou mesmo a correr! Fizeram-se mil e uma coisas, mas as memórias do primeiro evento ainda são muito frescas. Esse primeiro impulsionou tantas outras...
A.F.: Esclareçam-me uma d´úvida – é a [promotora] Cosmonaut que faz vinte anos, ou o Xmas Rock Fest, enquanto festival?
N.S.: São os dois, na verdade. A Cosmonaut, enquanto figura legal, faz dez anos. Porém, enquanto figura...
Hugo Ferreira: Enquanto e-mail!
N.S.: Exato! Enquanto label, faz também vinte anos.
A.F.: Então, pode-se dizer que o Xmas Rock Fest foi um dos primeiros eventos – senão o primeiro – que organizaram?
N.S.: Foi o primeiro. O primeiríssimo!
A.F.: Como surgiu essa iniciativa de começar a organizar concertos, eventos/festivais?
N.S.: Nós tínhamos uma banda, juntamente com dois amigos, o Telmo e o Zeca. Ensaiávamos sempre ao fim-de-semana, e queríamos tocar nas listas de associações de estudantes da escola, e eventualmente fazer mais concertos. Infelizmente, não tínhamos nem público, nem condições de o fazer noutro espaço qualquer. Mais tarde, através do Fernando, que pertencia ao Grupo Coral, conseguimos arranjar um local para o nosso primeiro evento, que se chamaria Xmas Rock Fest. No primeiro ano, entrámos em contacto com os Fora de Serviço, uma outra banda de Penafiel. Estávamos sempre a ver o Zé [dos Fora de Serviço] a tocar lá na escola, e na altura toda a gente os reconhecia como “a grande banda punk de Penafiel”! (risos) Nós queríamos algo “mais punk”, e acabamos por conseguir convencê-los. Para além deles e da nossa banda, falámos com um amigo nosso, o Pedro Gama, cujo primo, o Vesuco, tocava nos Fita-Cola, uma banda rock de Coimbra. O Pedro foi então buscar os Fita-Cola a Coimbra, que chegaram com o rótulo de “primeira grande banda internacional a vir a Penafiel” (risos), sendo que era o segundo concerto deles e o primeiro fora de Coimbra! No segundo ano, voltamos a trazer os Fita-Cola e os Fora de Serviço, por amizade e afinidade ao primeiro ano. Tocámos também com Anti-Riot and the Headblasted Machine, Davide Lobão e os The Chemical Wire, e uma malta do Porto, os X-Cons. Já no terceiro ano, trouxemos Day of the Dead e Four Ways to Die - infelizmente, já não me recordo dos restantes três...!
Unsafe Space Garden no Xmas Rock Fest, a 20 de dezembro.
A.F.: O que vos motivou a organizar um evento, que mais tarde se tornou num festival, no período do Natal?
H.F.: De certa forma, deveu-se a timing. A primeira vez que tocamos, enquanto banda, foi em contexto de apresentação de listas de associações de estudantes. Isso acontece normalmente em Setembro ou Outubro. Seguiu-se a necessidade de organizar um segundo concerto, e, curiosamente, coincidiu com esse período.
N.S.: Foi, sem dúvida, uma questão de timing. Por outro lado, uma pessoa também pensa, “No Natal? Porque não...?”. Até a escolha do nome é inocente!
A.F.: Para ser sincero, acaba por ficar na cabeça...!
N.S.: Há muitos eventos com este nome, mas acabou por ficar. Inicialmente, tivemos uma cadência bastante regular, nos primeiros anos. Depois, começaram a vir os problemas, dificuldades de arranjar um espaço. Até 2010, o festival repetia-se anualmente, e de seguida começou a ocorrer em formato bienal.
A.F.: Onde é que começaram por organizar o festival?
N.S.: Nos três primeiros anos, organizamos o festival no CCC – Clube Criatividade e Cultura. Nos dois/três anos seguintes, o festival passou para as caves do Pavilhão de Exposições de Penafiel. Nos anos seguintes, passou pelo Influenza, por Luzim, na casa de um amigo, e por uma pequena sala da Assembleia Municipal [de Penafiel].
A.F.: Há pouco referiram algumas das bandas que passaram pelas primeiras edições do festival, frisando a vossa amizade e afinidade com algumas. Ao longo dos anos, como é ou como tem evoluído o vosso processo de seleção de bandas para o festival?
N.S.: Assenta essencialmente no nosso gosto musical.
H.F.: Este ano, por exemplo, várias das bandas que convidamos para tocar são projetos com quem já nos cruzámos, enquanto MUAY, ou partilhamos palco, durante estes anos. Já outros são projetos que realmente gostamos e já queríamos ter trazido noutras situações. Há também o caso de elementos dessas bandas que já passaram por cá, com outras bandas.
A.F.: Consegues lembrar-te de algum caso específico?
H.F.: Por exemplo, este ano temos por cá os Solar Corona Elektrische Maschine. Em 2015, recebemos os Killimanjaro, que é um outro projeto do José Roberto. No caso de dUASsEMIcOLCHEIASiNVERTIDAS, tocamos com eles no ano passado. O mesmo com Don Pie Pie, com quem partilhamos palco no Ferro Bar. Já Unsafe Space Garden é um dos vários projetos do José Vale, e normalmente gostamos sempre de incluir os projetos dele de alguma forma. É um processo relativamente híbrido. Não fazemos muito scouting: temos um leque de nomes e contactos, e mediante a disponibilidade, organizamos a edição.
N.S.: Mas, acima de tudo, assenta no gosto musical. Procuramos trazer projetos com os quais nos identificamos e que sejam de certa forma universais – projetos do Porto, Lisboa ou até de Penafiel, mas que possam ser compreendidos em qualquer parte do mundo. No fundo, são projetos altamente profissionais, com bastante qualidade, de vários géneros. Tentamos ter um espetro bastante alargado, evitando que seja um festival bastante fechado.
Solar Corona Elektrische Maschine no Xmas Rock Fest, a 21 de dezembro.
A.F.: De facto, dá para compreender esse cuidado na edição deste ano. Abrange sonoridades suficientemente diferentes!
N.S.: Pensando bem, a única banda que tem voz é apenas Unsafe Space Garden. De resto é tudo instrumental (risos).
A.F.: Por outro lado, foram referidas aqui várias bandas, desde Fita-Cola a Killimanjaro. Ao analisar cada uma, percebe-se um acompanhamento do panorama da indústria musical, no momento de cada edição. Isso é uma abordagem muito interessante.
N.S.: Pensa assim: em vinte anos, já tivemos muita coisa a passar por aí. Por exemplo, em 2009, foi possível trazer os Linda Martini a um outro festival que organizávamos, o Ignition. Eram uma banda fantástica, mas não estavam no patamar em que estão atualmente.
A.F.: A propósito da atual edição, ontem foi possível ver uma enorme adesão do público. Embora não fosse o dia com lotação esgotada, deu excelentes prenúncios do que será o segundo dia. Principalmente pelo ambiente, em que se notava que muitos dos presentes se conheciam, e não exclusivamente conhecidos/amigos vossos. Fez-me recordar de experiências recentes em espaços como o Café Avenida, em Fafe, ou mesmo no Maus Hábitos, no Porto. Como é que foram conseguindo mobilizar esta pequena/média comunidade?
N.S.: Acho que, mais uma vez, se prende com a repetição. O festival acontece há vinte anos, nesta altura. Também por ser na altura do Natal, temos a vantagem de muita gente que está fora da cidade regressar neste período. Acaba por ser um ponto de encontro! Encontramo-nos sempre com malta com quem já não estamos há muito tempo... Como se costuma dizer: junta-se o útil ao agradável.
H.F.: Nós começamos a fazer estes eventos com sensivelmente 16 ou 17 anos – aliás, o Nuno tinha 16, eu tinha 17. Abrange uma altura em que normalmente tens um conjunto de amizades de contexto de escola. As pessoas ainda vinham em “matilha”, em grupos. Claro que, passados estes vinte anos, muitas destas ligações se vão perdendo. Uns continuam a morar em Penafiel. Outros vêm numa edição, e apenas tornam a regressar uns anos mais tarde. Prende-se, portanto, à questão da regularidade que o Nuno referiu. De certa forma, vai ajudando a que as pessoas continuem a aparecer. Considero uma feliz coincidência o período do Natal – o pessoal costuma fazer os jantares de convívio antes dos concertos, e depois vem curtir em conjunto.
A.F.: É mesmo essa a sensação com que se fica. Esse conjunto de amigos e conhecidos, que ano após ano regressam ao festival e à cidade, servirá como catalisador da continuidade do Xmas Rock Fest?
N.S.: É uma sensação incrível, o facto de saber que hoje vou estar com muita gente com quem já não estou há algum tempo. É a cena mais altamente! Organizar esta festa assemelha-se a organizar um aniversário, em que vêm os teus primos que estão no estrangeiro. Estou imensamente satisfeito por saber que vou poder rever várias caras conhecidas. Aliás, alguns parece que não veem os concertos: independentemente das bandas, o que os motiva acima de tudo é poder estar aqui a dar “duas de conversa”.
Don Pie Pie no Xmas Rock Fest, a 20 de dezembro.
A.F.: No fim, acabam até por também gostar do concerto e da banda... (risos) Como é que encaram o papel destas iniciativas locais/regionais no panorama musical? Esta questão prende-se, novamente, com os vossos vinte anos dentro desta indústria...
N.S.: Podia dizer que, antes, o panorama era igual ao de hoje. Mas, vendo bem, acho que tens muito mais a acontecer – a Internet também ajuda nessa imagem. No entanto, acho que há até muito menos concertos a acontecer. Principalmente no Porto, na cena underground.
H.F.: Sim, principalmente a cena underground.
N.S.: Por exemplo, concertos de Killimanjaro, de Solar Corona, etc. Acho que há menos concertos, apesar de tudo. Em Penafiel, há exatamente os mesmos – aqui nunca mudou. Agora haverá mais, beneficiando da presença do Ponto C (Cultura e Criatividade). Onde sentimos que o pulso do movimento mudou, ou onde achamos que havia mais concertos, é principalmente nas outras cidades. Por exemplo, Porto, Lisboa, Coimbra, Viana do Castelo, etc. Havia mais concertos de rock, hard rock, punk, entre outros. Estamos, talvez, a passar por uma fase mais complicada... No entanto, considero que as bandas estão muito melhores.
H.F.: Sim. Parece-nos que as bandas que estão atualmente a surgir e a tocar são melhores do que algumas da nossa geração, há vinte anos. E com a mesma idade!
A.F.: Bastaria pensar, por exemplo, num exemplo mais cliché, mas óbvio: os MAQUINA. Estão com uma rotação...
N.S.: Uma rotação brutal! Lá está, um bom exemplo do que estamos a dizer. Uma grande banda, com uma regularidade de concertos imensa.
H.F.: Malta altamente focada. Tocamos com eles há cerca de ano e meio, em Barcelos. Penso que foi no Souto Bar. Acho que chegamos até a abordar este assunto... Embora não sejamos propriamente “velhos”, a verdade é que, com a idade deles, não éramos tão focados e determinados. Lá está, os tempos também seriam outros. A forma como te profissionalizas na área e a levas a sério também está diferente...
N.S.: O nível de qualidade e profissionalismo subiu muito. Ou, então, nós é que filtramos e só prestamos atenção a determinadas bandas... Quero acreditar que é a primeira opção.
H.F.: Hoje em dia, um miúdo que comece a tocar guitarra tem facilmente acesso a um arsenal de pedais e de sons, que antes nem sonhávamos. Antes, comprávamos um pedal a um amigo e passávamos meio ano a experimentar todas as potencialidades, até decidires trocar com outra pessoa.
N.S.: E não havia OLX!
H.F.: Não havia nada! No fundo, a perceção do nível a que podes e pretendes chegar está muito mais presente. O que é fantástico!
dUASsEMIcOLCHEIASiNVERTIDAS no Xmas Rock Fest, a 21 de dezembro.
A.F.: Bem, aproveito agora para vos colocar uma última questão... Vinte anos, e agora?
N.S.: Mais vinte! Para o ano, estamos aí de novo. Depois de conseguirmos chegar a um patamar e a um lugar onde há condições de trabalho, e belas condições, e tendo em conta tudo aquilo que fomos conversando – nomeadamente, o que estas iniciativas trazem de proveitoso para o panorama musical –, é um contexto que acaba por trazer mais oportunidades. Para os que possam ter a iniciativa de começar a tocar um instrumento, de formar uma banda, nada melhor do que estar em contacto com vários projetos fixes e relevantes do panorama nacional.
H.F.: Subscrevo.
N.S.: De certo modo, não deixa de ser uma formação, como numa empresa. Aqui, uma pessoa vê um concerto, aprende e observa no local, partindo do exemplo de outros profissionais da área. São, diria, pequenos estágios.
H.F.: Aconteceu o mesmo connosco, da mesma maneira que víamos concertos e queríamos chegar àquele nível.
N.S.: De facto, poder contribuir para tudo isto, ao fim de vinte anos, e com previsão de mais vinte, é fantástico.