Encore ‘22
«Um grande concerto merece, e de que maneira, um bom encore. Um inesperado regresso dos músicos ao palco - que, no fundo, já é esperado. As músicas que mais se esperavam são tocadas. O público vibra, canta os refrões já decorados na ponta da língua. O André vira-se para a Rita, e confidencia-lhe, 'Sabia que faltava esta!'. O Gonçalo perde a timidez e despede-se do crowdsurfing; bem, pelo menos por essa noite! A Maria, a Joana e a Vitória aproveitam para tirar a última selfie. Ah, não!, esperem - afinal são o Marco e o Pedro, encostados a uma árvore, lá ao fundo. Elas estão ali à frente, em pleno coro com o Ty Segall. Por fim, as luzes apagam-se. O reverberar de uma guitarra ecoa. Todos se vão embora. Despedem-se mentalmente daquele que seria palco para regressar um dia, talvez...»
À sua maneira, todos os anos são um concerto - ou um festival, mas isso deixa-se ao critério de cada um. Haverá sempre memórias, momentos que ficarão gravados na cabeça de todos. Expectativas que foram cumpridas. Planos que se começaram a delinear. Promessas que se fizeram para eventuais regressos. Se assim é, e como qualquer grande concerto, então é necessário um encore.
Contrariamente aos dois anos anteriores, 2022 demarcou-se como aquele em que a Música pôde regressar ao seu aguardado refúgio. E nós, melófilos vorazes como não poderíamos deixar de ser, estamos mais que felizes! Já em 2023, Alfredo Fernandes revisitou o ano transato, delineando aquele que poderia ser o seu "encore perfeito" para um ano já de si perfeito. Vinte e duas fotografias, vinte e dois discos em revista - memórias com um elenco de luxo, mas demarcado também por atores-revelação.
© Sirus Gahan
Loyle Carner não é propriamente um novato na indústria musical. Que o digam os dois álbuns já lançados antes do corrente ano (Yesterday’s Gone e Not Waving, But Drowning). No entanto, admito que foi hugo – o seu terceiro disco, lançado em 2022 – que me apresentou à estética instrumental cuidada do rapper londrino. Seguindo (praticamente) à risca o método adotado por Simbiatu Ajikawo, apelidada de Little Simz, Carner aborda-nos com um hip hop de relativa frescura, fundindo-se com laivos jazz e R&B. Torno a frisar “frescura” – embora este tratamento musical não nos chegue como novidade, revela-se constantemente uma agradável surpresa (contrastando com o percurso sufocado do hip hop mainstream). Carner não será, talvez, um rapper convencional. A sua voz, se tal fizer sentido, é demasiado doce para o permitir descrever dessa forma. Ao contrário das habituais mensagens quase vazias no hip-hop mainstream, a voz solta-nos versos com particular e insegura ternura. Temas como Polyfilla, Georgetown ou Speed of Plight simplesmente nos abraçam, como filho que procura a segurança dos braços de um pai. Em hugo, Loyle Carner afasta-se da superficialidade observada em múltiplos dos seus colegas de ofício. É-nos permitido entrever, aqui, vislumbres de um sujeito enunciador mais maduro, ciente da realidade e mais intimista. A “aparente” redução no uso de samplers (usualmente repetidos à exaustão no cenário do hip-hop) remete-nos para um incrível sentido de oportunidade. Aliás, nada nos instrumentais que se nos vão surgindo é (literalmente) óbvio. Em nota pessoal, diria o mesmo, há uns meses atrás, sobre Sometimes I Might Be Introvert (penúltimo álbum de Simz). Esta busca pela novidade dentro de uma sonoridade reflete o que de bom o panorama musical tem... Loyle Carner aproxima-se cada vez mais de uma maturidade musical notada em Kae Tempest ou Little Simz, perpetuando a ideia de que um estilo musical se pode reinventar, não caindo no dito estereótipo. E, manuseada cuidadosamente, essa habilidade que tão poucos possuem permite-nos contemplar temas ímpares (e pessoais), como é o caso de Hate ou Nobody Knows.
© Phoebe Fox
O início da década corrente rematou-nos com o perfeito momentum para vorazes ouvintes de post-punk. Quer aliando traços do punk (breve aceno aos shame), quer se regrando pela sonoridade mais convencional do estilo musical (atente-se para Scratchcard Lanyard, dos Dry Cleaning). No entanto, a cada novo lançamento, críticos atrás de críticos parecem esforçar-se em resgatar o termo “revivalismo” – dando a entender que, à sua maneira, ditos projetos não serão mais que um reflexo cíclico da História. Transmitem-nos que as referências estarão sempre lá (por mais que me custe, reconheço-me tratar de um destes casos...). Na verdade, nenhum dos projetos que vão surgindo consegue resgatar a excelência de projetos de outrora. Muito embora, isso é até algo surpreendentemente agradável; nenhum suscita exibir intenções de os querer substituir ou, quando muito, repetir façanhas. Escusado seria dizer, os Yard Act aprenderam essa lição. The Overload, a estreia discográfica da banda de Leeds, é a prova disso: homenageia sem o fazer, inovando sem ser verdadeiramente inovador. Na primeira abordagem aos singles que antecipavam a estreia do projeto de Leeds, talvez me tivesse deixado levar pela icónica voz de James Smith. Um ano volvido, encontro-me repetidamente arrebatado pela prestação do vocalista. Algo na dicção e timbre quase jocosos deste britânico transporta-me para uma breve sensação de calma. Se bem que, no instante seguinte, dou por mim a saltaricar inconscientemente, acompanhado do livre (mas delicado) dedilhar da guitarra de Sam Shipstone – e essa anterior pacatez dissipa-se numa enérgica reação melófila. Dead Horse, Payday ou Tall Poppies nutrem de uma fluidez entre a vocalização de Smith e os companheiros, igualmente merecedores de reconhecimento sentido. Ryan Needham, por sinal, é quiçá o elemento agregador do grupo britânico – mostrando, também aqui, que um baixo consegue ser igualmente impactante e fixe (talvez aqui deixe um breve aceno a Rich...). Após uma audição completa do disco, solto ainda assim um pequeno lamento desconsolado. A ausência de um tema como Fixer Upper – um autêntico hit, sem qualquer pretensão de o ser – torna-se bastante notória. Numa combinação harmoniosa de todos os pormenores que caraterizam os Yard Act, o tema em questão é um perfeito cartão de boas-vindas para novos ouvintes. Mas, não que me queixe... Aliás, The Overload colmata esse espaço em branco de um modo absurdamente original! Na falta de um hit, surgirá sempre um novo.
© Sophie Jouvenaar
Se bandas britânicas emergentes, como Dry Cleaning e Yard Act, “teimam” em catapultar-nos para um universo mais terra-a-terra, a partir do baixo impactante e letras de reflexo mundano (amarrando-nos vivamente ao quotidiano fabril das sociedades contemporâneas e problemáticas associadas), a leviandade com que Aubrey Simpson, Matt e Lucy Board nos revelam em Souvenirs é, no mínimo, otimista e sonhadora. Os Pale Blue Eyes retomam, em plenos anos 20, a bonança etérea do pop/synth-pop e shoegaze dos anos 80 – que perdurou até hoje através de temas como Friday, I’m In Love (The Cure) ou Lips Like Sugar (Echo & The Bunnymen). Arrancando com um autêntico hit (sim, Globe é material para repetição interminável!), os Pale Blue Eyes não cedem intervalos desnecessários de apresentação. De imediato nos introduzem à sua sonoridade idílica – e esse pequenino pormenor torna o disco ainda mais especial. Globe compõe-se de artifícios usados (e abusados) em variadíssimos projetos. Mas o trio tem algo que muitos não têm: uma candura ingénua (e invejável, atualmente), que este projeto de Devon transparece desde os primeiros acordes - se bem que a mensagem reflita uma realidade mais sombria. A sinergia entre os riffs da guitarra e o sintetizador sideral (esta dupla de instrumentos não podia ser ainda “mais eighties”) preenche-nos docemente os ouvidos. E isto é, pura e simplesmente, bonito. Muito embora, Globe é “um” tema, num total de dez! Cada faixa de Souvenirs é, à sua maneira, um hit a não esquecer. Há margem para um carinho paternal (por parte do ouvinte) quando confrontados com temas como Little Gem ou Honeybear – que expandem, com singular melodia, uma sonoridade que nos é familiar, tão afável. Faixas como TV Flicker ou Dr. Pong exibem-se musicalmente opulentas, espreitando oportunidade para sequente replay. Muito embora, é a já referida sinergia instrumental, agora em temas como Star Vehicle ou Sing It Like We Used To, que nos capta desde logo a atenção – desenhando-nos no rosto, suavemente, um agradável sorriso. Debaixo do meu nariz, uma banda lançou um dos álbuns mais aliciantes de que terei memória – ainda que munidos de reconhecidíssima simplicidade.
© Alex Bex
Se os conterrâneos de Leeds suscitam ter aprendido (à sua maneira) uma importante lição musical, um jovem quarteto de Liverpool parece ter até adulterado essa mesma moral. Musicalmente, os Courting são muito mais do que um projeto enraizado no "revivalismo" do post-punk. Ainda que a linha de baixo ressurja como o marco impactante da corrente musical, Sean Murphy O’Neill e restantes comparsas procuram transmitir, em Guitar Music, a seguinte mensagem: existe realmente algum limite? Há quem os aponte como uma fugaz fusão entre um post-punk experimental e um pop teen, de guitarras ocasionalmente encorpadas. Permitam-me, de forma oportuna, referir: foi-me difícil confiar em tão subjetiva sinopse de um projeto tão promissor. Muito embora, e paralelamente escutando temas como Famous ou Jumper (adornada dos mais curiosos tiques pop de que me vem à memória), dou por mim a acompanhar alguns dos refrões mais pirosamente contagiantes (“It’s alright,/It’s been a hell of a time/You’re not making this harder for me!”). Claro que – conhecendo-me como conheço – um single como Tennis me capta mais rapidamente a atenção. À semelhança dos temas anteriores, O’Neill retorna com a sua carismática postura, revelada por uma vocalização reconhecível e sentido de humor certeiro. No entanto, é talvez o caraterístico baixo sonante que possa aqui prender mais os novos ouvintes (a par de uma guitarra que dispara em todas as direções). Aliás, aspetos quais se vão multiplicando gradualmente pelo álbum (note-se a apoteótica versão do single Crass), até atingir um epicentro caótico em Loaded – que, para qualquer aventureiro, é o derradeiro remate para canto. Talvez apenas lamente o excessivo recurso de autotune na vocalização de O’Neill. Vá, ainda assim há que reconhecer que, sem qualquer limite, o quarteto se comportou bastante bem...!
© David Breda Silva
Paralelamente ao panorama musical do ano transato – um ano repleto de estreias discográficas –, os Eigreen parecem ter desfrutado de uma particular vaga de novas promessas. Francisco Frutuoso não é, ainda assim, propriamente novato neste mundo da Música, atendendo o seu envolvimento em vários outros projetos (Flying Cages, PINHATA). Porém, não deixa de ser caricata a ocasional descoberta de múltiplas faixas (presentes no álbum de estreia da banda de Coimbra) pela irmã gémea, Luísa Levi, de forma a despoletar o ponto de partida dos Eigreen. Se devido ao acaso, ou devido a coincidência premeditada, a verdade é que, quando expostos a um ouvido atento, ditas faixas nos surgem impossíveis de ficar guardadas durante tanto tempo (armazenadas numa “gaveta” durante oito anos!). Eigreen (2022) revolve em torno de dois aspetos muito particulares: as vozes sinergéticas de referidos irmãos (Francisco Frutuoso e Luísa Levi). A leveza do conjunto permite uma introspeção urgente. Fechar os olhos, sem pensamento algum associado. A sonoridade sossegada do projeto de Coimbra flui com uma preciosa ligeireza, dando aso a um imaginário deveras pessoal. Dreamland corresponde a essa idealização – um instrumental onírico, adornado de uma bateria vagarosa (sem trepidação desnecessária) e sintetizadores devidamente localizados. O quinteto passeia-se por entre o otimismo e o horizonte longínquo do dream pop/dream rock, adicionando, tema a tema, novas camadas de sonoridades pertinentes. Percorrendo os oito temas que preenchem o disco homónimo, o projeto vai usufruindo da calmaria da bateria, jamais arriscando sobrepor-se à doçura das vozes dos vocalistas! Já as guitarras, esses elementos vão-nos embalando por entre o trajeto de temas como It’s You ou White Sharks. Ainda assim, é quiçá o baixo regrado de Carlos Serra que se assume perante a pacatez do instrumental, dividindo os holofotes com os dois irmãos. Arriscar-me-ia a referir a este integrante como a batuta de uma construção musical autocontida, mas de particular beleza. Na verdade, os Eigreen não revelam uma exuberância desmesurada; nem tampouco de apelo imediato. À margem de Circus – tema onde os elementos se sobressaem, se libertam de amarras impostas pelos próprios –, as composições que nos apresentam assumem uma tímida candura. Alertam para uma audição introspetiva, baseada na experiência relaxada que, nem sempre, somos capazes de usufruir. Mas músicas como It’s On e Chocolate Treats clamam por uma cabeça despreocupada, isenta das rotinas do dia-a-dia. Algo difícil, nos tempos que correm. Muito embora, vale a pena tentar de quando em quando...
© Cheryl Dunn
Reconhecendo que, entre a panóplia diversa de novos projetos, as Horsegirl talvez se destaquem como das pérolas mais bem escondidas do ano transato, não poderia deixar de destacar o seu ponto de partida discográfico (Versions of Modern Performance). Contrariamente a projetos como Yard Act, Wet Leg, Jockstrap, ou até mesmo Black Country, New Road (que, no espaço de um ano, nos surpreenderam com dois excelentes álbuns), o trio de Chicago não suscita alterar radicalmente o panorama musical. Mas não será de estranhar. Aliás, é até fundamentado: inserem-se, sim, num universo DIY deveras próprio, não tendo receio de nos convidar para esse cantinho tão pessoal. Após um primeiro contacto com o leque de temas que aqui nos desvendam, facilmente reconhecemos um prazer pelo simples ato de tocar. Se, eventualmente, não nos for suficiente esse pormenor, existem também mais camadas a analisar! Gigi Reece, Nora Cheng e Penelope Lowenstein são estudantes universitárias, terminando por transpor – de forma suficientemente natural – as problemáticas e receios do seu dia-a-dia (fará até lembrar um certo introvertido do cenário indie rock atual, de nome Will Toledo). Entre gravações de qualidade subtilmente duvidosa (propositada e bem aliciante!), guitarras em distorção e um par de vozes melodiosas, as Horsegirl convidam-nos a escutar ora descargas elétricas de Option 8 ou Anti-Hero, ora a pacificidade virtuosa de faixas como World of Pots and Pans e Beautiful Song. Curiosamente, não deixa de ser intrigante aperceber-nos da tenra idade deste trio. A sonoridade que aqui nos trazem soa-nos extremamente familiar – talvez porque, no fundo, o é. Escutar faixas como Billy (que, entre a distorção sonora da gravação, esconde uma faixa incrível) permite entrever múltiplas inspirações, pequenos gestos de “homenagem” a bandas de peso do cenário indie americano. Claro está, a referência fundamental não podia deixar de ser mais óbvia (Sonic Youth). Pensando bem, são projetos que se encontram já distantes do momento de ribalta – mas que continuam a influenciar gerações futuras. Gerações que, quem sabe, nem tiveram oportunidade de os conhecer. No entanto, estas três amigas tocam como se os conhecessem desde sempre. O que, de certa forma, não deixa de ser verdade. Exceto, talvez, o pormenor “pessoalmente” ...
© MJ Cargill
Revelando-se como uma das agradáveis descobertas, em 2021, cada novo recanto do universo de bolso de Christopher Duncan – abreviado para C Duncan – me deslumbra mais que o anterior. Assim foi com a abordagem pop requintada de Health (2019), prosseguindo com a brandura de Architect (2015) - que, por sinal, não cessa de ser um deleite auditivo escondido aos olhos de todos. O seu quarto disco, lançado em meados do ano transato, perpetua esta admiração pessoal pelo compositor escocês. Alluvium é, no seu cerne, uma produção deveras cinematográfica. Após a etapa discográfica anterior (Health), Duncan recorda-nos que é capaz de se mesclar com distintas sonoridades, sem pertencer forçosamente a alguma. Na sua recente adição, encaminha-nos para um álbum contemplativo, mas rico em detalhes! Tome-se como exemplo Air: a subtileza da percussão e do baixo acompanham, suavemente, a progressão sinfónica que já lhe é tão comum. Cada pequeno som surge com um propósito. Acariciar-nos em jeito sedutor, como um amante na penumbra. Talvez me reconheça como um ouvinte precipitadamente espantado; se bem que, se se refletir por instantes, não deixa de ser uma obsessão bem fundamentada. E temas como Heaven, Torso ou Pretending revolvem essa ideia preconcebida. Quer adornadas de roupagem mais folk-pop, através da guitarra-acústica, quer acompanhadas de piano/sintetizador certeiro (Heaven é um tema pop de índole angelical, de invejar muitos músicos dos 80s). C Duncan tem aprendido com os erros (haverá necessariamente algum?!), traduzindo-se numa expressão gradualmente complexa. E, ao não baixar os braços, mima-nos com autênticos regalos para ouvidos curiosos (Lullaby, You Don’t Come Around, Upon The Table). Duncan é um compositor de mérito mais que reconhecido. E, a par de figuras ímpares como Sufjan Stevens, tem vindo a demonstrar ser dotado de uma caraterística cada vez menos habitual: a criação de canções. Se Say, Garden (Architect), Wrong Side of the Door, Impossible e Health (Health) se destacavam como composições magnânimes, o quarto disco do músico escocês adiciona mais faixas a uma lista já repleta de surpresas. Bell Toll surge aqui como o estandarte do registo. A composição instrumental permite à sua voz terna e firme um destaque digno! Já o tema homónimo (Alluvium), esse é, simplesmente, qualquer coisa. Talvez não seja a descrição mais bonita; mas, depois de muito a (re)escutar, um melófilo perde-se nas palavras. O mesmo sucede com The Wedding Song, que numa sublime singeleza, convencerá os ouvidos mais teimosos. Mais diria: todo o disco poderá servir, se assim o desejarem, como perfeito trampolim para uma admiração inocente de um artista que merece um carinho redobrado.
© André Coelho
Há algo nos Fugly que, gradualmente, nos leva a acarinhar o projeto portuense: a franqueza com que teimam em nos abordar. Melhor dizendo, a franqueza com que os seus temas nos abordam. Uma leviandade terra-a-terra – talvez resultante da atitude punk descomprometida – capaz de nos induzir numa espiral de emoções. Os próprios parecem reconhecer uma tendência para uma sonoridade “simples”, uma construção musical versada no puro prazer de tocar. A pretensão deste grupo de amigos nunca terá sido a de reimaginar o panorama musical. Muito embora, a boa-disposição e descontração transpostas pelo frenesim elétrico permite-nos abraçar uma especial genuinidade – genuinidade tal que variadíssimos projetos parecem ter descurado. Dandruff (segundo álbum do grupo português) manifesta mais ainda esta perspetiva. Millenial Shit (2018) e Morning After (EP, 2016) já nos haviam habituado a uma postura enérgica, impaciente e suada. Se havia dúvidas, talvez não as restem agora: quatro amigos nascidos em plenos 90s e com o auge da adolescência na década de 2000. Os Fugly conseguem trabalhar bem as suas referências (destaque para Offspring, talvez...?), terminando por se traduzir numa expressão musical muito própria. O álbum de estreia principiava a fórmula de modo magistral (Hit a Wall). Curiosamente, Stay In Bed confere igualmente um início de sonho a Dandruff. Sem introduções desnecessárias, confiança na pujança, e duas notas apenas (ou não): o espírito punk e rockeiro dos portuenses permanece intacto! E que assim o diga Heavy Weight Champion ou Old Age Mutant Sewer Punks – a última procurando até recuperar parte da loucura presente em Morning After (EP) –, mantendo a chama do punk/rock dos 90s bem viva. Escutar temas como Sober ou Space Migrant (onde, inesperadamente, o quarteto suscita abrandar as hostes) leva-nos numa viagem pela faceta bonacheirona do grupo. Assentando na voz invulgar de Pedro “Jimmy” Feio, recordam-nos que nem todos os rockeiros vivem de festas, crowdsurf, mosh pits ou poros sudoríferos ultra-estimulados. Talvez esse seja o problema – facilmente nos limitamos a imaginar os músicos em condições específicas. E, perante faixas como Music (lembram-se de referir genuinidade?), apercebemo-nos da facilidade com que uma vida consegue ficar de pernas para o ar (“Music makes me feel so good/But I got no money from making”). De forma tão natural, a banda portuense expõe-se num uníssono e solidário berro naquele que será, certamente, o tema mais sincero do álbum. Equilibra os laivos elétricos do quarteto e uma mensagem (oportunamente) sentida. Muito embora, toda a fragilidade a que nos habituavam se desmorona; seguidamente (re)escutamos Mom, e nos apercebemos que estamos perante um disco dos Fugly. Uma música cujo lema é “I love you mom!”? Apenas mais um dia na rotina de uma banda punk-rock. Que venham mais!
© Hollie Fernando
Não começar esta apreciação reconhecendo-me como elemento do conjunto de melófilos chatos que não se sentiram inicialmente atraídos pelo encanto de Rhian Teasdale e Hester Chambers, seria uma oportunidade perdida. Tendo por base uma descontraída audição inicial, o álbum de estreia (homónimo) das escocesas Wet Leg surgiu-me pontualmente monótono, e em certas ocasiões ate abafado pela excelência dos singles até ao momento (do lançamento) partilhados. Em suma: opiniões prematuras originam precipitações sem fundamento... Por mais que tente, admito ainda assim que temas como Loving ficam verdadeiramente aquém da caricaturesca Wet Dream ou a eletrizante Angelica – que brilham não só pela lírica angelicalmente viciante (não pude evitar a piada), mas também pela composição pop bem cuidada. Tornando a escutar estes primeiros passos de Teasdale e Chambers, descobrimos, lentamente, que até a simplicidade de algumas das faixas se revela surpreendente. De Being In Love a I Don’t Wanna Go Out, a voz frágil da vocalista e os riffs de guitarra – quem encomendou guitar heroes dos tempos modernos? –, a dupla alcança por breves instantes um patamar musical almejado por muitos. Aliás, não é particularmente fácil, num álbum de estreia, retirar tantos coelhos da cartola (ou quererei dizer, tirar riffs da cartola?), como a linha de guitarra, em Angelica! No fundo, o álbum homónimo reflete tão bem uma tecla pressionada em infindáveis circunstâncias – a frescura com que as gerações mais jovens costumam brindar-nos no panorama do mundo da Música. Talvez o nonsense de Oh No, ou a maturidade instrumental de Convincing e Ur Mum, não respondam imediatamente com inovação. Não, talvez, do mesmo modo como fazem os contemporâneos black midi, Squid ou Black Country, New Road. Não obstante, as Wet Leg dominam (inconscientemente, ou não) o conceito de canção. As suas faixas envolvem-nos de uma maneira despretensiosa, conferindo-lhes o estatuto de hit. Ora pela postura serena das frontwomen, ora pelas letras – e refrões – jocosas e satíricas (“You said, ‘Baby, do you want to come home with me/I’ve got Buffalo ’66 on DVD’“), que instantaneamente nos convidam a decorá-las. E, como exemplo cimeiro, permitem-nos mergulhar nessa mestria (quase) ocasional logo ao segundo tema (Chaise Longue). Em suma: escutem-no. Depois conversamos.
© Zackery Michael
Por vezes, terminamos por nos render a evidências. Não sendo um fã assíduo do projeto britânico, dei por mim a reconhecer o óbvio: os Arctic Monkeys terão orquestrado, em The Car, um dos seus trabalhos mais desafiantes até à data. Para alguém que se escapulia por entre a desinibição de (anteriormente) jovens adultos – prostrada em faixas como I Bet You Look Good On The Dancefloor ou A Certain Romance –, descobrir uma firmeza e destreza musicais tão adultas relembra-nos que, de facto, esses anteriormente teenagers são agora adultos com uma responsabilidade triplicada. A peça essencial do sucesso de The Car reside num único elemento: Alex Turner. Por mais que se queira esquivar do óbvio, é impossível. Turner assume aqui uma completa metamorfose, procurando dar o espaço requerido para florescer uma voz que tem tanto de acolhedor, como de bon vivant. De uma fragilidade tão peculiar! Calmamente, vai desvendando os encantos de uma fratalidade vocal ímpar – adotando, simultaneamente, uma voz doce (Jet Skis On The Moat ou Body Paint) e breves apontamentos de falsete (Hello You). E, quando procuramos adiantar uma fórmula pré-concebida, apercebemo-nos da sua invulgar ausência. Este exímio vocalista surpreende com cada detalhe. O aguardado disco dos Arctic Monkeys poderá não prosseguir o legado dos sonhos teenager do início de carreira. Muito embora, não deixa de ser caricato poder afirmar tratar-se de um registo adequadíssimo para escutar no conforto de um sofá. Se a vocalização sedutora seria argumento suficiente, também o será o instrumental. Toda a sonoridade dos britânicos parece enredar Alex Turner num suave abraço. O destaque é a sua voz; porém, não cessam em demonstrar os efeitos da responsabilidade triplicada da vida adulta! O manejo dos instrumentos é delicado, desprendendo-se em composições bonitas e afáveis. Perfect Sense, The Car ou Sculptures Of Anything Goes serão alguns dos exemplos dessa nova dualidade banda/vocalista, que parece resultar tão bem. Deixo, ainda assim, um maior destaque para There’d Better Be A Mirrorball: a faixa mais acertada (lindíssima, por sinal) para persuadir um melófilo difícil de se convencer. Será esta a reestruturação da nossa perceção de um álbum dos Arctic Monkeys? Apenas podemos aguardar, pacientemente...
© Matilda Hill-Jenkins
“Daqui a cinco anos, serão cabeças de cartaz de um grande festival!”. Tal poderia muito bem ser o pensamento de um espectador, após um concerto desta banda com reputação meteórica. A verdade é que uma crise pandémica inconveniente terá, talvez, atrapalhado no prazo necessário à construção do misticismo por detrás do nome “black midi”. Em 2022, estes quatro rapazes suscitam ter confessado que vão ainda muito a tempo...! Após um ano de interregno discográfico (e depois de tantos outros a delirar os ouvidos do público assíduo do The Windmill, em Londres), o quarteto britânico trouxe à superfície Cavalcade (2021), o seu segundo disco. Um ano mais tarde, voltam a atemorizar o panorama musical com uma terceira vaga (Hellfire). Onde, em Cavalcade, uma considerável parcela dos temas se arrastava calmamente (note-se, ainda, a beleza e destreza de ditas faixas), o seu sucessor transparece uma vaga ideia de serem os próprios músicos a arrastar-nos do conforto do sofá. Schlagenheim (2019) já demonstrava rasgos criativos normalmente presentes em músicos com formação musical bem regrada – assim como o seu sucessor. Mas é este terceiro disco que coloca este quesito em total nudez! Desconcerto atrás de desconcerto: os black midi conseguem pegar num instrumento e arrancar composições diabolicamente delirantes, de modo trocista e saudável. Desde laivos rock a metais de sopro estonteantes (Sugar/Tzu), dos ritmos soturnos de Eat Men Eat ao frenesim vertiginoso e louco de Welcome To Hell. Se antes haveria margem para dúvidas, talvez não o haja agora. Os black midi tocam (de) tudo! E se não bastasse, os próprios admitem-no com um sorriso endiabrado. Todos os elementos se destacam como responsáveis pelo festim musical que se nos surge. Equitativamente, cada um brilha. Claro que referir (uma vez mais) a excelência e prestação exímia de Morgan Simpson na bateria seria imprescindível. Assim como o será não aludir à voz impecável de Geordie Greep! Neste terceiro registo de estúdio, o vocalista (franzino à primeira vista, mas prodigioso para quem o escuta!) demonstra-nos possantes e invejáveis dotes vocais. A performance de Greep confere nuances mais jazzísticas a Hellfire, afastando a sonoridade do grupo da convenção rockeira onde pareciam querer inserir-se inicialmente. The Race Is About To Begin e Dangerous Liaisons remetem-nos para esse argumento, de facto. Mas rápida e imprevisivelmente descambam num corrupio instrumental. E, deliciados com o que nos brindam, apenas pedimos por mais!
© Vera Marmelo
Sejamos sinceros: alguém, no seu perfeito juízo, aguardava por um atenuar repentino (quem sabe, fruto da idade) por parte de Manuel Molarinho e Ricardo Cabral? Se a resposta for um “sim” relutante, o engano é imenso. A dupla responsável por alguns dos temas mais insanamente criativos, acompanhados pelo desenfreado espírito rock que paira pelos ares do Norte, jamais poderia abrandar. Se se desprendiam em hits como Bebé Nestlé e Quero Ser Um Ecrã, no primeiro álbum (homónimo), os Baleia Baleia Baleia não perdem fôlego no sequente registo discográfico. E nós, ouvintes que anseiam por novas terapias de choque, terminamos por esboçar um sorriso de ponta a ponta. O ambiente não podia ser mais estereotipicamente másculo: dois vigorosos senhores a desconstruir a perceção de rock, mas imbuindo-se da energia e alienação que a sonoridade providencia. Na verdade, a faixa de abertura de Suicídio Comercial – reconhecida reverência para o título esplêndido e mais que adequado para tal tormenta – indicia-nos o inverso. Babes do Zodíaco (uma segunda reconhecida reverência!) não só desagrega o cliché, como nos oferece, de rompante, um refrão magicamente aliciante (“Não me está a parecer/Que isto vá resultar”). A letra jocosa deste tema dardeja-nos de imediato com o nonsense tão familiar da dupla. Muito embora, este refrão será apenas o primeiro de muitos! Afinal, se há algo a que nos haviam habituado em Baleia Baleia Baleia (2018) é que o engenho lírico da dupla tanto é cativante, como mordaz; aliás, no seu cerne, as mensagens apresentam maior significado do que aquilo que se julga.... Egossistema (“Já o meço desde os tempos do liceu/O meu ego é maior que o teu”) ou Jangada do Vazio (“Peito de betão, lago na testa/Paras o scroll e fazemos uma festa”) remetem-nos para a (in)sanidade mental destes dois rapazes, desconstruída no verso seguinte. Ricardo Cabral, na bateria, serve de catalisador para o curto refreio da dupla, brindando-nos com um ritmo alucinante e contagiante. Molarinho, por detrás de um baixo-feito-guitarra-só-que-não-mas-até-é, transmite-nos as mensagens de um jeito trocista muito próprio. Dispondo-se, a bel prazer, de múltiplos e engenhosos artifícios líricos, expõe-nos uma crua realidade. Difícil de aceitar, mas com a qual nos revemos. Aproximando a sonoridade DIY do álbum anterior de uma abordagem mais rigorosa, mas fiel ao espírito da banda durante as respetivas atuações, os Baleia Baleia Baleia viajam pelas moralidades do Politicamente Correto (“Primária na inquisição/Liceu com a mocidade/Mestrado em chibaria/Doutores da moralidade”), pela robotização excessiva da realidade, em Venham As Máquinas (estabelecendo breve paralelismo com Quero Ser Um Ecrã), e por analogias entre religião e, enfim, o estado das coisas (Relaxa Que Encaixa). Aliás, talvez esse seja o resumo ideal para o projeto em análise: um perfeito (embora comicamente distorcido) reflexo do panorama das coisas. “Deixa passar”, dizem eles, em Exorcismo. Não é, de todo, mal pensado.
© Oscar Eckel
Quiçá não haja um trajeto acessível que me permita descrever o leque de emoções despoletado por I Love You Jennifer B. Aliás, esse é o ponto de partida. A maquinaria sonora desdobrada pelo duo Jockstrap ao longo dos dez temas que se seguem não poderá ser examinada de modo unidimensional. Talvez comece por me revelar, com relativa cautela, um curioso pelo projeto britânico. Não é todos os dias que assistimos ao surgimento de bandas que tanto nos desafiam, como nos surpreendem. O carrossel sensorial (musical, no caso) que Georgia Ellery e Taylor Skye nos apresentam na sua estreia discográfica é simultaneamente impactante e intrigante – I Love You Jennifer B é dotado de um punhado de verdadeiros hits, mas também de temas que ficam ligeiramente aquém das expectativas... Para quem chega a este pequeno texto sem qualquer referência, peço subtilmente – se não lhe for de grande incómodo – que retroceda um par de frases acima. Recomece a partir de leque de emoções. A verdade é que o duo consegue trabalhar de modo impecável a sua sonoridade, implementando uma duplicidade de sensações. Quer através das cadências lentas, versadas na guitarra acústica/violino de Georgia (acompanhada de uma voz belíssima), quer através da desconstrução eletrónica, pelas mãos de Taylor Skye. O exemplo mais prático seria Neon – onde a expressiva vocalista nos vai preparando para um culminar de sons dispersos (mas unos). Neon é, de facto, uma sincera abertura de disco. Não mascara o real propósito dos londrinos: a desconstrução da ideia preconcebida de um tema pop. Passando seguidamente por Greatest Hits e Concrete Over Water, vamos assistindo a uma fórmula reajustada, mas que não se repete de todo. Ressalvo, até, na excelência instrumental de Greatest Hits (cujo título é suficientemente caricato). Muito embora, nem sempre a desconstrução de Skye se revela, quem sabe, a mais adequada. Se até então se assistia a um requinte no quesito eletrónico, temas como Debra ou Jennifer B surgem como uma miscelânea de sons adicionados à pressão, sem o cuidado redobrado que pareciam transmitir. Mesmo 50/50 (no seio de uma emoção totalmente rave) não escapa a um certo facilitismo instrumental. A ideia de reinventar o panorama pop cai, superficialmente, por terra. Não sejamos, porventura, tão literais... De facto, a proposta dos Jockstrap resulta, à medida que é dado o espaço necessário para o seu trunfo brilhar: a beleza vocal de Georgia Ellery! Os artifícios eletrónicos de Taylor Skye e o violino pontual de Ellery surgem surpreendentes em Concrete Over Water. No entanto, é a voz da vocalista que nos inebria durante a totalidade do tema. E tal poderá ser verificado em faixas mais pacatas, como Lancaster Court e What’s It All About. Servem de breves plataformas para dito vislumbre. Por sinal, esse encanto vocal é potenciado em Glasgow! O último tema apropria-se, de modo tão natural, do estatuto de hit. Simplicidade instrumental e uma pérola ainda por descobrir (que voz linda!) preenchem tudo aquilo que pediríamos num genuíno tema pop. Se um tema tão bonito como Glasgow não for merecedor de um reconhecido replay, então descubro-me (inesperadamente) musicalmente insípido.
© Ozge Cone
Os Zola Blood talvez não sejam uma banda para escutar com expectativas (demasiado) elevadas. Evitando um precipitado desvio de olhar, em tom de desaprovação, peço-vos que não me interpretem mal! Os britânicos apresentam, sem dúvida!, uma linguagem eletrónica límpida, elegante – e, claro está, tentadora. Porém, a contenção musical do trio impede-os de florescer num crescendo exuberante. E nada disso está errado. Confere-lhes, até, uma beleza singular; no entanto, para melófilos à espreita de um escape mais animado, talvez o segundo disco dos Zola Blood (Black Blossom) não se encaixe em tal demanda... Felizmente, não foi o meu caso. Se bem que For The Birds (o tema mais sonante desta segunda entrada discográfica) eleve certamente a fasquia, o projeto britânico não se reveste de uma eletrónica festiva, exuberante ou efusiva. A costura crescente dos instrumentais (nunca atingindo verdadeiros picos de frenesim sonoro) leva-nos a uma apreciação fotográfica de cada frame que nos mostram. Black Blossom é, sim, uma companhia relaxante – e até magnetizante –, construindo-se, passo a passo, a partir das subtis nuances que vai adotando. O grupo vai descortinando a sua sonoridade para uma introspeção paciente. De preferência, uma audição isolada da mais pequena perturbação sonora. Deixar-nos levar pela ternura computadorizada dos sintetizadores e ritmos eletrónicos de It Never Goes, Bright Eyes e Do It. Associando-se à composição eletrónica que nos vão exibindo, a prestação vocal de Matt West revela-se, de igual modo, um alívio auditivo. Um conforto de difícil descrição; a voz doce do frontman dos Zola Blood assume-se como um elemento afável, que nos convida a melhor conhecer o projeto. Por entre o sintetizador ondulante de Indigo Skies, West prontamente nos transporta para a viagem sonora que será Black Blossom. Reveste-se de uma ternura tão singela, mas familiar. Blood Tied e Black Blossom (tema homónimo) usufruem desse mesmo detalhe, brindando-nos com um sorriso contagiante. Mal nos apercebamos, as doze faixas foram surgindo num ápice, remetendo-nos para uma enorme angústia final: quarenta e cinco minutos passaram a voar. Haverá tempo para nova audição? Talvez a questão não necessite resposta...
© Just Mustard
Chegados a este ponto, o contacto com novos (velhos, dependendo da perspetiva) lançamentos permite-nos analisar cuidadosamente toda a produção discográfica de 2022. Começa-se a tirar conclusões precipitadas como “talvez este conjunto seja suficiente”, ou “já nada me pode surpreender!”. O pior adversário de um melófilo é a incerteza quanto à descoberta de projetos que o desafiem. E, após tantas análises, seria imprudente assumir tão fadada perspetiva. O caso dos Just Mustard – que pacientemente fui deixando para o final desta seleção – é um caso prático deste logro de que tanto nos convencemos. Ainda que uma análise não faça jus ao seu novo registo discográfico. Admitindo-me ouvinte recente do projeto irlandês, os Just Mustard foram sem dúvida a aposta do ano transato mais certeira e oportuna. Como se a sua densa sonoridade e maturação invejável não bastassem, Heart Under revela uma construção instrumental impecável. De tal modo se assume complexo, que difícil será descobrir como o abordar... O grupo irlandês explora eximiamente as fronteiras do shoegaze, optando por uma abordagem mais soturna/gótica - dando liberdade total às guitarras para berrarem em estridente distorção. Still, Seed e Mirrors fazem-nos as honras de abraçar em tão acolhedor frenesim elétrico, à medida que um baixo possante toma as rédeas dos devaneios. Por outro lado, talvez este não seja o trunfo elementar dos irlandeses... À medida que escutamos Heart Under, vamo-nos apercebendo de uma panorâmica cinematográfica singular. 23 expõe-nos referida maturidade instrumental, delineando guitarras belas e estridentes num baixo robusto; um projetor numa sala escura, vazia, mas particularmente confortável. Estabelecendo paralelo com a discografia anterior (destaque para Deaf e Frank), apercebe-se, quiçá, uma subtil mudança na jornada – e, se assim fizer sentido, na abordagem vocal. Ao longo do segundo disco, Katie Ball acompanha os colegas com uma vocalização onírica (diria mais, de sonho!), conferindo às pesarosas mensagens um semblante angelical. Em I Am You, a título de exemplo, Katie percorre o tema, com soberba quietude, lado a lado com o baixo em cadência lenta de Rob Clarke, desaguando em autêntica catarse elétrica (“Can you change my head?”). Todo o registo discográfico nos remete para uma experiência imersiva (de Early a Rivers), destinada a escutar e reescutar em múltiplas ocasiões. A fragilidade vocal de Katie Ball estabeleceu uma perfeita simbiose com o instrumental vertiginoso que a circunda. Isto já não é uma banda a dar os primeiros passos: os Just Mustard mostraram de modo bem firme que vieram para ficar!
© The Bobby Lees
Quão irónico será imaginar que, meio século mais tarde, uma das bandas promissoras do punk americano viria de um dos marcos geográficos da história do rock? Se ser residente em Woodsctock não bastasse, a admiração pessoal de Iggy Pop pelos The Bobby Lees complementa o argumento. Na verdade, não são propriamente novatos neste cenário atual: Beauty Pageant (2018) e Skin Suit (2020) fitam-nos de imediato, alertando-nos para um iminente salto na carreira. Já Bellevue, terceiro disco dos americanos, termina por recordar-nos quão bom é descobrir, de quando em quando, as novidades do punk. Isto, claro, sem nos desiludirmos! A nova fornada discográfica começa (literalmente) com um grito. De liberdade? De revolta? Sejamos sinceros: importará a sua natureza? A faixa introdutória (homónima ao disco) dardeja-nos um ciclone atroador. Uma voz quase aos berros irrompe da conjugação da bateria galopante e das descargas da guitarra. Vários temas seguem o espírito anteriormente descrito (Ma Likes to Drink, Death Train). E, em cada um, nem as guitarradas desenfreadas de Nick Casas ou a postura tumultuosa de Sam Quartin nos deixam ficar mal. Um autêntico caos! No entanto, é quando The Bobby Lees se aproximam de uma atitude mais complexa que revelam uma destreza e maturidade previamente encobertas pelo frenesim. Monkey Mind acalma a insanidade, albergando um sorriso trocista. Já Hollywood Junkyard e Strange Days oferecem-nos uma vocalização inesperada e afável da parte de Quartin. A última, a título de exemplo, abusa até de dita surpresa para construir uma explosão sonora passível de reconhecido orgulho. Mais poderia ser escrito acerca de Bellevue... No entanto, deixarei apenas a dica para curiosa audição (praticamente) às cegas. Asseguro um pormenor: não se arrependerão!
© Alex Evans
Qualquer dúvida que surja acerca da futura geração no mundo da Música, é prontamente rasurada mal nos damos conta de toda uma panóplia de jovens projetos (deveras promissores!). Desde cedo, músicos como black midi, Black Country, New Road, ou os mais recentes Courting, demonstraram ser dotados de firmeza para desvendar novas potencialidades do panorama musical. Se bem que não o repaginem totalmente, os londrinos The Lounge Society são um bom exemplo de que não se deverá julgar um músico pela idade. Melhor diria, a sua sonoridade comprova-o magistralmente. Associando-se à Speedy Wunderground com apenas 15 anos, o quarteto poder-se-á orgulhar de ter lançado um disco de estreia aos 19! Cameron Davey (vocalista e baixista) e companhia desfrutam de uma energia ímpar de jovens adultos que, de certa forma, não cessa de ser invejável. Nutrem do efeito dominó da revitalização do post-punk britânico; no entanto, aquela genuinidade de tenra idade permite-lhes articular uma expressão muito própria, versando-se mais na vertente mais rock do movimento. Entre guitarradas e percussão frenéticas, brindam-nos com Tired of Liberty. Como que nos querendo provar que chegam para ficar, os The Lounge Society não teimam em esperar demasiado: People Are Scary e Blood Money auto-proclamam-se hits! Os riffs marcantes e repetidos no primeiro tema são mais que um motivo para nos deliciarmos. Descontrair, reconfortar-nos na cadeira/sofá, e acabar por memorizar os riffs (para, mais tarde, os cantarolarmos inconscientemente). Remains, já lá bem no interior do disco, também repete com requinte a magia descrita. Lado a lado com a sonoridade apetecível, os britânicos não parecem transmitir mensagens fofinhas. Pelo contrário: mascaradas pela linha de baixo certeiro e ressonante, Davey vai exibindo múltiplos argumentos penetrantes e pesarosos. A voz de Cameron Davey não é, propriamente, das mais afáveis. Rouca, algo desafinada; no entanto, este invulgar e desalentado narrador remete-nos para a mais autêntica realidade. Uma geração que se pensa estar perdida - refletindo-se aqui o inverso. Faixas como Beneath The Screen (“You’re beneath the screen/You don’t even know it”) ou Boredom Is A Drug (“Boredom is a drug/Has it hit yet?”) remontam-nos para problemáticas frequentes, atuais. Complexas, como o jogo de guitarras se vai mesclando, entre riffs distintos e simultâneos. As mensagens tornam-se gradualmente sombrias. It’s Just A Ride alerta para a industrialização humana em que se tornaram as empresas (“And make it something I can profit from/Your imagination kills me”). People Are Scary retrata a crescente ansiedade social que se observa nas gerações mais novas (“When will I feel comfortable around other people?”). No fundo, os The Lounge Society conseguiram personificar um pedido de ajuda de uma geração que se pretende encontrar, entrando já perdida no vício do ciclo sistémico. Ou, talvez, este seja só um mero capricho de pós-adolescente! Aliás, como os próprios afirmam em Generation Game, “Who cares anyway as long as we are OK”?
© Ana Viotti
Dezanove anos depois (agora, durante a leitura deste texto, já serão praticamente vinte), os Linda Martini poderão orgulhar-se de um feito alcançado por muito poucos: apresentar uma discografia consistente e altamente fiel à proposta inicialmente apresentada em Olhos de Mongol (2006). Álbum após álbum, experiência após experiência, o quarteto – entretanto reduzido a trio, e novamente tornado quarteto – sempre primou por nos brindar uma sonoridade muito própria, reconhecível, e inesperadamente homogénea. Embora saindo com relativo atraso, ERRÔR enriquece esta perceção. Se a demora poderia ser alvo de lamúrias dos ouvintes mais acérrimos, a verdade é que tampouco importa: a espera é deveras recompensada. Casa Ocupada (2010) começava por Mulher-A-Dias. Linda Martini (2018) dardejava-nos com decibéis no máximo, em Gravidade. Sirumba (2016) apresentava-nos uma faceta mais singular do grupo através do tema homónimo (Sirumba). Os Linda Martini sempre nos habituaram a uma introdução precisa do trajeto que iriam tomar. Mas, como se expõe o rumo de um disco que se assume sem rumo? De uma beleza ímpar (como apenas a banda em questão conseguiria alcançar), Eu Nem Vi eleva-se pela simplicidade já comum das letras complexas de André Henriques, adornando-se de um instrumental paciente e preparado para descarregar voltagens nos ouvintes. O próprio vocalista nos instrui, com audácia perspicaz, acerca da viagem sem destino que viriam a adotar (“Eu nem vi que eu sem ti sou só eu sem ti”). Essa sensação de desnorteio acompanha-nos durante todo o disco; Horário de Verão, segundo tema do alinhamento, entrega-nos até a perspetiva de alguém que se perdeu nas horas, nos dias, no tempo – até na própria vida (“Fui eu que me atrasei/Andei muito ocupado”). ERRÔR não é, de todo, um álbum concetual. Muito embora, atendendo a complexidade das composições do projeto português, não seria de admirar aperceber-nos de uma interligação das diversas faixas a uma única temática: a viagem sem destino como um erro da atualidade. Para lá chegar (terão já chegado...?), os Linda Martini vão dispondo de tópicos e argumentos pertinentes – nem sempre de fácil digestão. Rádio Comercial coloca em total nudez a comercialização da Música (e, claro está, das rádios). Taxonomia abusa da eletricidade inerente do grupo, da dualidade guitarra/baixo, e desprende-se aos berros num ternurento aviso sobre ansiedade e depressão (“Que o medo não se esqueça de onde vem”). E Não Sobrou Ninguém atira-nos (literalmente) à cara um perfeito ensaio sobre a cegueira e inércia de um povo perante a iminência da intolerância como ordem de razão. A pandemia e o estado das coisas (estabeleça-se aqui um breve paralelismo com Suicídio Comercial, dos Baleia Baleia Baleia) conferem uma ausência de direção a uma população cada vez mais perdida. Um desnorteio enorme – vá, limitar-nos-emos a esboçar um descarado sorriso perante a decadência atual, dizer em alta voz “estou fixe, estou super fixe!” (Super Fixe). Talvez não seja esse o caminho a seguir... Se assim for, qual será?
© Fontaines D.C.
“Os nossos meninos estão tão crescidos!”. Essa expressão repetida maternalmente revela-nos dois breves detalhes: um processo de maturação gradual e um click racional repentino. Como que, num piscar de olhos, nos tivéssemos apercebido que o tempo passa, que as pessoas mudam – em suma, que todos crescemos. Fontaines D.C. poderão ser o reflexo ideal de referida expressão; os fãs de longa data recordar-se-ão vivamente dos laivos desenfreados de temas como Boys In The Better Land ou Hurricane Laughter. Deparando-nos com o curto intervalo entre A Hero’s Death (2020) e Skinty Fia (terceiro disco dos irlandeses), um choque momentâneo nos assalta a consciência. Se bem que, entre o primeiro disco, Dogrel (2019), e o sucessor, a espera se revele ainda mais curta, o quinteto de Dublin demonstra, no terceiro registo discográfico, um patamar de maturidade musical inexplicável. A Hero’s Death e Televised Mind (A Hero’s Death) indiciavam uma iminente mudança de trajetória. Quem assim pensou, não se terá equivocado! Big Shot, segunda faixa do disco, remete-nos para um universo distante, porém terreno. Já não são teenagers que berram a um microfone; agora, adultos murmuram lamúrios da vida passada, presente e futura. O projeto aventura-se corajosamente nas entranhas do revivalismo do post-punk. Aliás, após a audição deste álbum, surge até uma questão: haverá ainda necessidade de perpetuar a referência a revivalismos? Se algo fica claro, escutando Skinty Fia, é que já não são meras referências. Por entre menções cliché como Joy Division, ou audazes acenos a The Stone Roses, o quinteto irlandês adquire uma sonoridade que, sem qualquer referência temporal, se colocaria paralelamente à panóplia histórica dos 80s. Não têm pressa em se desprender em riffs abafados pela transpiração; vagueiam lentamente pelo trilho demarcado pela linha de baixo (pojante!) de Deegan (How Cold Love Is, Bloomsday, Roman Holiday). Não será, de modo convencional, um álbum de hits. Um marco musical acessível para agradar massas. Skinty Fia desvenda-nos uma urgência em comunicar, a sós, com os seus elementos. Muito embora, os Fontaines D.C. permitem determinados temas brilhar, de uma forma peculiar e aliciante. O tema introdutório (In ár gCroíthe go deo) mescla equilibradamente a fúria pela incompreensão da cultura popular e a ternura de um gesto de homenagem. Nabokov aproxima a sonoridade do quinteto de uma abordagem shoegaze, ainda que sem muito se afastar de casa. Faixas como I Love You ou Jackie Down The Line destacam, por entre guitarras mais soltas, a voz anasalada e esmorecida de Grian Chatten: um pormenor inicialmente singular, mas delicadamente afável. De um canto a outro, uma penumbra paira sobre as cabeças do grupo de Dublin; surgem-nos mais cabisbaixos, pesarosos. Skinty Fia (tema homónimo) salienta-se por esse mesmo motivo. A voz desalentada de Chatten, as guitarras apagadas, o baixo minucioso, a bateria que nos induz num estado meditação profundo (haverá ali uma ténue influência de Madchester?). Estes já não são os mesmos miúdos que nos apresentaram em Dogrel. Caso para dizer, “Os nossos meninos estão tão crescidos!”.
© Joana Castanheira
Embora não se reconhecendo como novatos no cenário musical nacional (aliás, já cá andam há uns bons anos...), foi apenas nos últimos meses de 2022 que os portuenses Summer Of Hate nos presentearam com o seu disco de estreia (Love Is Dead! Long Live Love). Reconheço tratar-se de um discos mais desafiantes do ano transato. Não por uma eventual complexidade, mas pelo registo sonoro que o grupo adotou. Ainda assim, não me interpretem mal: para os que se aventuram, e se vão deixando ficar neste recanto musical, esta estreia nacional apresenta-se como uma pérola por descobrir. Visualmente, o conjunto portuense ostenta um perfil de respeito: uma vocalista em posição central, ladeada por três guitarristas e um baixista. Um pelotão sonoro que nos estranha inicialmente, mas que se entranha. O projeto não se coíbe de apresentações. Fazem perentoriamente questão que abrandemos o ritmo do dia-a-dia e escutemos, com delicada atenção, um mantra instrumental muito bem conduzido. Os graves desprendidos em This Is 100% A Jazz Intro não só nos permite suavemente desaguar na faixa seguinte (Come Talk), como nos insta com um detalhe de louvado sarcasmo. O reverberar que nos abraça não é prazenteiro para ouvintes passageiros; tudo nos prepara para o destilar de portento das guitarras. Desde logo nos avisam o que nos aguarda. Um retrato utópico do psicadelismo convencional – e os Summer Of Hate manejam essa noção com uma calmaria tremenda. Pedro Adelino, João Martins e Pedro Ferreira suscitam divertir-se, enquanto nos constroem uma barreira sonora densa (e simultaneamente convidativa) em temas como Dying Tide ou Year of Kali (Redux). Porém, a partir do quarto tema, o grupo altera a trajetória. De rompante, agarra firmemente as rédeas. Como se nos dissesse, em tom jocoso, “Vamos ter uma conversa de crescidos!”, Laura Calado demonstra-nos a sua real faceta. Por entre o universo onírico emanado pelos riffs de guitarra, somos recebidos por uma vocalização quase angelical. Uma tranquilidade contagiante, não muito usual nos projetos do estilo musical em questão. Conservaram para a segunda metade de Love Is Dead! Long Live Love uma beleza melodiosa, uma voz de comando de respeito, escondida por entre a bruma de guitarras em distorção estranhamente afável (Nao Sei). Here We Are é um hit que, na ausência de tal epíteto, adquire o posto referido na nossa cabeça. Já Ecstasy (Redux) exibe com mestria como um riff e um refrão orelhudos, em natural simbiose, poderão conferir a uma faixa a necessidade urgente para a perpetuar na memória. Entre lançamentos pomposos e de notável prestígio, um álbum de estreia deste calibre recorda-nos um aspeto a ter sempre em mente: as maiores surpresas estão mesmo debaixo do nosso nariz... E, quer se acredite ou não, os Summer Of Hate sugerem-nos que várias surpresas nos aguardam, numa próxima ocasião!
© El Hardwick
Hoje em dia perdi a noção de quantos projetos engavetados já resgatei – os quais, sem me aperceber, havia colocado numa fila de espera. Os britânicos Porridge Radio – embora Every Bad fosse destacado como uma referência em 2020 -, foram um dos casos. No início deste mesmo ano, decidi dedicar-lhes um carinho que antes não havia concedido. Não só descobri a maravilha sonora que Every Bad realmente é (diga-o o meu fascínio por Long!), como também me encantei com o sucessor de respeito, Waterslide, Diving Board, Ladder To The Sky. Este terceiro álbum, orquestrado pela sincera genuinidade de Dana Margolin, é uma produção radicalmente distinta do segundo. Mais simples. Menos elétrico (o semblante mais suave de Rotten facilmente contrasta com a agitação de Don’t Ask Me Twice). Ainda assim, é a lírica de Dana que aqui se sobrepõe à poderosa descarga das guitarras do álbum precedente. Mensagens quase crípticas, facilmente confundidas com previsíveis canções de amor de um cantautor. Mas as delicadas letras (ao pormenor) e uma voz fora do comum negam esse intento – este terceiro registo aproxima-se ainda mais das inseguranças, ansiedades e solidão desta jovem e tímida frontwoman. Ao longo de doze temas, Dana expõe múltiplas facetas de uma personalidade fraturada e suscetível, procurando lidar com as sequelas de uma rápida ascensão e um simultâneo isolamento (bem evidenciado em Back To The Radio). Várias bonitas confissões proferidas num canto-narrado rouco – sim, também a tristeza consegue ser bonita... Todos já nos teremos deparado, certamente, com as nossas versões inseguras, reticentes e solitárias. Pelo que, de Birthday Party a End Of Last Year, de The Rip a U Can Be Happy If U Want, uma natureza adolescente é emanada das orquestrações de Dana Margolin e companhia, levando o nosso próprio “adolescente interior” a acompanhar os berros urgentes de uma vocalista que tem tanto de canção, como de coração. O que seria, então, uma sincera confissão, torna-se assim num sentido e acolhedor abraço.
© Rosie Foster
Começo por confessar o seguinte: eu não consigo chorar. Pelo menos, com facilidade. Porém, há aspetos que me deixam realmente perto desse estado de melancolia. Ants From Up There, dos londrinos Black Country, New Road, é um desses marcos. Não serei capaz de desprender uma lágrima, perante uma orquestração tão sublime; no entanto, a vontade é imensa. E não é um absurdo, pensar de tal forma. Em For The First Time (2021), os britânicos haviam deixado assente a trajetória irreverente e revolucionária que viriam a tomar. Na segunda adição discográfica, permitem-nos entrever uma singela fragilidade humana. Sejamos sinceros: não se poderia pedir por um álbum mais bonito... Referirei exaustivamente – esta é uma produção simplesmente bonita! Desde autênticos épicos transatlânticos (Chaos Space Marine) a temas auto-contidos, ora risonhos (Good Will Hunting), ora de incompreendida angústia (Bread Song). O septeto demonstra, neste segundo disco, um amadurecimento de uma sonoridade já de si complexa. Se Opus ou Science Fair (de For The First Time) ostentavam uma liberdade instrumental ímpar, observamos, por seu lado, uma calma e estranha ordem. Os Black Country, New Road alinham na perfeição uma orquestra dos tempos modernos: guitarras, baixo e bateria, havendo espaço para um piano, um violino e ainda saxofone. No seu devido instante, cada elemento surge no álbum com o destaque merecido. Não é todos os dias que se escuta um saxofone com um papel preponderante – Lewis Evans demonstra perícia invejável. Georgia Ellery reflete com mestria o papel de uma violinista numa banda de rock, à semelhança de Sarah Neufeld (Arcade Fire). Os instrumentais não nos submergem; afagam-nos, carinhosamente. Colocaram de lado as suas óbvias influências anteriores (Slint), mimando-nos com uma abordagem post-rock, elegante e de especial beleza (Basketball Shoes). Ants From Up There atua, no seu cerne, como uma bonita carta. Não uma carta de amor; um convite para conhecermos, de perto, os devaneios de um vocalista cada vez mais submerso pela pressão da sociedade e da indústria musical. Antes designado narrador ocasional dos tempos modernos, Isaac Wood não cessa em albergar-nos na sua peculiar poesia. Sim, poesia – através da tímida eloquência vocal , Wood poder-se-á dar ao luxo de se chamar poeta-fora-da-caixa. O sujeito enunciador leva-nos a bordo do seu concorde, exibindo delicadamente os seus receios, angústias e desgostos (“I was breathless/Upon every mountain/Just to look for your light”, Concorde). O vocalista não se envergonha; pelo contrário, expõe-se na totalidade. A sua personificação guia-nos pelos seus recorrentes escapes à realidade (Snow Globes, The Place Where He Inserted The Blade), como que adivinhando não apresentar muito mais tempo para o fazer. Saber, de antemão, que este é o último projeto acarinhado por Isaac Wood trata-se, quiçá, de um enorme dissabor. Muito embora, o seu prematuro afastamento confere a este disco um estatuto raro na Música: o de clássico de culto, como muitos lhe chamam. No fundo, não deixa de ser, apenas, uma triste despedida...